Teatro

Espetáculo "Soledad - a terra é fogo sob nossos pés" circula pela Espanha

Idealizada e interpretada pela atriz pernambucana Hilda Torres, peça resgata a memória e o protagonismo da militante paraguaia Soledad Barrett

Em entrevista à Folha de Pernambuco, Hilda Torres comentou sobre a trajetória do espetáculo "Soledad" - Divulgação

Sete anos após a estreia do espetáculo “Soledad – a terra é fogo sob nossos pés”, em 2015, período conturbado da política brasileira que precedeu a ascensão do conservadorismo ao poder, a atriz pernambucana Hilda Torres segue defendendo a memória da militante e guerrilheira paraguaia Soledad Barrett em mais uma circulação internacional, dessa vez em cidades da Espanha - ao longo do mês de outubro - e Argentina no início de 2023. 

A nova turnê internacional contempla oito apresentações em Madrid (última cidade a receber a peça no dia 24/10), Santander, Bilbao, Oruña de Piélagos, Cabezón de la Sal e Torrelavega - onde morou o avô de Soledad, o jornalista e escritor espanhol Rafael Barrett, grande inspiração ideológica para ela. “O público está nos recebendo maravilhosamente bem", comenta Hilda, que adaptou sua atuação para o idioma espanhol.

A luta de uma mulher
“Quando a gente olha as lutas e revoluções marcantes da história, sempre trazemos o nome de um homem, mas essa luta nossa é algo muito grande”, critica Hilda. Soledad teve sua trajetória ligada à luta social, tendo como referência seu avô Rafael Barrett e outros familiares. Quando nasceu, seus pais e irmãos mais velhos já eram militantes e dedicavam suas vidas quase integralmente para combater ditaduras em toda a América Latina. 

Os exílios políticos acompanharam sua vida desde muito nova. Ainda bebê, enfrentou o seu primeiro, na Argentina. Aos 17, em mais um exílio, dessa vez no Uruguai, Soledad foi sequestrada por um grupo neonazista e teve suas duas pernas marcadas por navalha com a suástica, apenas por negar-se a gritar palavras em saudação a Hitler.

Mesmo diante do horror, Soledad passou a se dedicar à luta contra a opressão. Também foi para Moscou, Argentina e Cuba, onde casou e deu a luz a sua única filha, antes de vir para o Brasil.

Por aqui, Soledad foi entregue ao regime por Cabo Anselmo, um agente infiltrado no movimento sob o pseudônimo de “Daniel” que levou à morte cerca de metade de todos os mortos e desaparecidos políticos contabilizados pela ditadura.

Contudo, a morte de Soledad não é o foco da narrativa. “O espetáculo conta a história de uma mulher viva. Muitas vezes a gente encontra na história dela como ‘a mulher que foi morta pelo cabo Anselmo’ e Soledad é muito mais que isso. Para mim é muito forte trazer a história de Soledad, que morreu há praticamente 50 anos, mas sua luta está tão viva”, pontua Hilda.

“Vários grupos de feministas estão convidando a gente para partilhar (‘cambiar’, como chamam aqui) experiências. É muito importante estarmos trazendo e entendendo a luta das mulheres contra as opressões do mundo. Trazer a história de Soledad é isso”, aponta.

Parceria com Balzán
A argentina radicada em São Paulo Malú Balzán assina a direção e a dramaturgia - criada em parceria com Hilda, a partir da cronologia da personagem, pesquisas de campo, músicas da época, poesias (muitas de ex-presos políticos), cartas, entrevistas e contato com familiares – especialmente as parceiras do projeto, Ñasaindy e Ivich Barrett (filha e neta de Soledad, respectivamente). 

A pesquisa utilizou diversas obras poéticas que datam de 1904 até a contemporaneidade, e depoimentos de quem viveu de perto a história. “Para montar o espetáculo, entrevistamos vários presos políticos e pessoas que tiveram contato com ela ou não, porque a gente precisava entender o sentimento daquela juventude”, explica Hilda.
A pesquisa utilizou diversas obras poéticas que datam de 1904 até a contemporaneidade | Foto: Divulgação

Arte e ativismo político
Para além das apresentações, o Grupo Cria do Palco - responsável pela obra – propõe debates sobre arte, militância e a conjuntura política do Brasil, a convite de organizações locais. Ñasaindy Barrett, filha de Soledad, integra o projeto e acompanha o espetáculo como debatedora fixa.

Ela teve papel de destaque no projeto, contribuindo com a pesquisa, assinando a identidade visual e cedendo uma canção de sua autoria para a trilha sonora. Após o término de todas as apresentações a produção realiza debates, geralmente sobre o ativismo artístico encampado pelo grupo.

Soledad na estrada
Desde a estreia, o espetáculo já realizou algumas circulações. No Brasil, circulou por outras três capitais além do Recife: Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza. “Em cada estado fizemos uma homenagem a uma mulher local. Mulheres que participaram da luta contra a ditadura militar, sobretudo a cearense Maria de Lourdes Miranda de Albuquerque, que iniciou o movimento das mães pela anistia e fez a 'boneca' do espetáculo.

Na primeira circulação internacional, Soledad passou por Montevideo (Uruguai), Assunção (Paraguai) e Havana (Cuba), sempre destacando lugares onde a personagem viveu ou que de certa forma têm alguma relação com sua história. 

A responsabilidade da arte
Hilda Torres lembra que quem é artista tem o poder de assumir um compromisso social para mudar a realidade em que vive. “Nosso papel é assumir a responsabilidade do mundo através da arte, que é um espaço que consegue dialogar mais com as pessoas. Ela tem um idioma que consegue se aproximar mais delas e fazê-las sentir e entender a vida e a outras possibilidades. Se entender partícipe da história, independente de participar de movimento social ou não”, pontua.

A atriz se emociona ao lembrar de um fato que acomteceu após uma apresentação para estudantes de escola pública, no Recife. “Quando terminou, um jovem chegou para mim com um envelope com R$ 188,00 em moedas. Eu disse que a gente não cobrava pela nossa militância e ele fez questão de nos pagar. E aquele foi o cachê mais valioso da minha vida. Não é fazer por fazer, é pelo compromisso”, frisa a atriz.

“Soledad morreu, mas a história de luta dela, não. Estar aqui hoje é entender esse sentimento que a luta continua. O papel da arte é o da responsabilidade. Não é só uma escolha vir para a militância, é uma responsabilidade, por isso não uso a expressão gratuita, porque não viemos aqui gratuitamente, mas pela militância”, afirma Hilda Torres.

Embates e relação com o público 
As primeiras impressões do público espanhol nesta nova circulação, segundo a atriz pernambucana, está sendo positiva e revela a preocupação com a conjuntura da política brasileira. “A peça está sendo muito bem recebida, as pessoas têm se emocionado bastante e convidado a gente para várias conversas e entrevistas. E como a gente está encontrando pessoas que de certa forma se interessam pelo tema e pensam igual a gente, elas estão preocupadíssima com o Brasil e fazendo falas de solidariedade com nosso país”, relata.

No Brasil, no entanto, conseguir lançar e circular com o espetáculo não foi fácil, em razão do acirramento político e até de sabotagem. Durante uma ocupação política na Rua da Aurora, em 2015, onde o espetáculo seria apresentado, roubaram do carro da equipe cenário, figurino e um livro  raro de memórias de ex-presos políticos. 

“Nós tínhamos outras coisas no carro. Tínhamos uma sacola de roupas e outras coisas que poderiam ser roubadas, mas só levaram o cenário (ou seja, papéis), a saia e um livro. A gente compreendeu isso como atentado político. “Os presos políticos se reuniram no país e nos conseguiu outro exemplar desse livro e dinheiro para comprar a saia novamente. Foi a primeira vez que eles se reuniram no país, no Paraguai e Uruguai. Em 2015 a gente não tinha nenhuma lei de incentivo, mas a gente sabia que precisava montar. E os ex-presos políticos doaram dinheiro para a gente fazer a peça”.

Em algumas ocasiões, a intolerância veio da plateia. “Em uma apresentação no Festival de Inverno de Garanhuns, durante o período do golpe contra Dilma, uma pessoa levantou e gritou durante a peça: ‘isso é uma peça de comunista, vou embora. Outra vez, em São Paulo, um homem da plateia me perguntou se eu não tinha medo de encenar esse espetáculo, de forma ameaçadora”, relatou.

Pernambucana Hilda Torres encena “Soledad – a terra é fogo sob nossos pés”  | Foto: Divulgação

Circulação de "Soledad - a terra é fogo sob nossos pés” na Espanha:

13 de outubro: apresentação no Teatro Concha Espina (Torrelavega), às 20h30;
14 de outubro: apresentação e debate na sala Mauro Muriedas (Torrelavega), às 18h00;
15 de outubro: oficina de teatro para mulheres na Asociación Eureka (Santander), das 17h às 21h;
16 de outubro: apresentação no Teatrería de Abrego (Oruña de Piélagos), às 20h;
17 de outubro: debate “arte y militancia” em la vorágine (Santander), às 19h30;
18 de outubro: encuentro con estudio de actores (Santander), horário a definir;
20 de outubro: apresentação do espetáculo no café de las artes (Santander), às 20h;
21 de outubro: apresentação na sala Arimaktore (Bilbao), às 20h;
22 de outubro: debate “arte y militancia” em louise michel | Arroka - Bilbao às 19h;
24 de outubro: apresentação em Madri no Espaço Lá Parceria, às 20h.

Ficha técnica:
Idealização e coordenação do projeto: Hilda Torres
Dramaturgia: Hilda Torres e Malú Bazán
Atuação: Hilda Torres
Direção: Malú Bazán
Cenário e figurino: Malú Bazán
Desenho de luz: Eron Villar D
ireção musical: Lucas Notaro
Produção Geral: Márcio Santos
Produção Executiva: Áurea Luna
Assessoria de Imprensa: Alcateia Comunicação (Andréa Almeida)
Debatedora Fixa: Ñasaindy Barrett de Araújo
Administração do Projeto: Hudson Wlamir
Designer: Tiago Melo