Eleições e saúde mental

Eleições e saúde mental: o adoecimento psíquico da população durante o período eleitoral

Com o país dividido, as discussões acaloradas atingem não só desconhecidos e amigos, mas também as famílias brasileiras

Relatos de ansiedade, medo, irritabilidade e falta de sono, entre outros sintomas, tornaram-se ainda mais evidentes e presentes entre a população brasileira durante o período eleitoral - Alfeu Tavares/ Folha de Pernambuco

Com o segundo turno das eleições, e a polarização incidente na sociedade contemporânea, principalmente no cenário de disputa presidencial entre o ex-presidente Lula e o atual chefe do Executivo Jair Bolsonaro, os relatos de ansiedade, medo, irritabilidade e falta de sono, entre outros sintomas, tornaram-se ainda mais evidentes e presentes entre a população brasileira. 

Com o país dividido, as discussões acaloradas atingem não só desconhecidos e amigos, mas também as famílias brasileiras. Relatos de pais e filhos brigados, netos e avós que deixaram de se falar devido às divergências políticas estão mais presentes. Com a internet e o imediatismo das informações, nem sempre verídicas, esse desconforto e esses confrontos tomaram conta da corrida presidencial. 

Falta de consenso

De acordo com a cientista política Priscila Lapa, a falta de consenso entre a população é latente sobre diversos temas como sistema eleitoral, pandemia da Covid-19, universidade pública e vacinas, o que divide a sociedade. 

Cientista política Priscila Lapa. Foto: Melissa Fernandes/ Folha de Pernambuco

"Como você reforma, como você muda um país politicamente se a gente não sabe para onde vai? Uma metade quer caminhar para um lado, a outra quer ir para o outro e quem é que vai construir esse consenso? Eu acho que isso não vai mudar no curto prazo, porque falta esse empenho de construir o consenso, ninguém está empenhado nisso, está todo mundo empenhado em fazer valer a sua opinião, a sua vontade, o desejo do seu grupo político e ninguém está olhando para o caminho do meio”, afirma Priscila. 

O psicólogo clínico e professor do curso de psicologia do Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau), Cleyson Monteiro, relata que as famílias estão sendo destituídas pela incapacidade de escutar o outro e de compreender a dinâmica daquilo que é defendido. 

“A gente sabe que no mundo precisamos de retóricas e nem sempre na vida você vai encontrar situações de conciliação, é assim no casamento, entre irmãos, e entre pais e filhos. Quantos pais e filhos não entram em discussão por causa de uma série de fatores como religião, política, questões sociais, e isso faz parte da vida humana, o ser humano precisa aprender a lidar com isso. Essas rupturas, esses desrespeitos, isso sim é uma transgressão da convivência comum. A gente pode lidar com os contrapontos, somos pessoas distintas”, declara Cleyson. 

É preciso ter cuidado com a afirmação de que “a minha verdade é a única realidade”. Essa necessidade de estar sempre certo e não lidar com o outro pode estar causando mais ansiedade na população, como destaca o psicólogo. 

Psicólogo clínico Cleyson Monteiro. Foto: Ricardo Fernandes/ Folha de Pernambuco

“A demanda da sociedade busca pela integração daqueles que pensam iguais, mas que na verdade a intenção é o oposto, é respeitar as diferenças e entender mesmo que você não concorde. Se a gente for há uma década, existia uma certa ludicidade nesse processo, um respeito, uma forma de lidar mais leve. Hoje os ânimos por influência de vários critérios emocionais, comportamentais, de uma nova pragmática que vivemos, estabelece um padrão de ansiedade”. 

Com o adoecimento da sociedade, também cresce a procura por atendimentos psicológicos. Porém, esse fato não aconteceu somente com a chegada das eleições de 2022, mas a demanda já vem aumentando desde a pandemia. 

“Veio a pandemia que potencializou e também a chegada dos efeitos e dos fenômenos sociais, questões políticas, fim de ano, a própria dúvida em relação ao futuro, qual é a perspectiva de futuro que nós temos, o que vai acontecer com a nova realidade, a mudança do mercado de trabalho, a mudança das condicionantes familiares, então tudo isso explodiu e potencializou os atendimentos na clínica”, diz Cleyson. 

A participação do eleitor na política 

Se antes o eleitor brasileiro era um sujeito que se mantinha afastado das questões políticas fora do período eleitoral, hoje em dia tornou-se mais ativo nas discussões. A mudança veio com a possibilidade de comunicação pelas vias digitais que ampliou a participação do cidadão.  

“Na política, a gente costumava dizer que o eleitor brasileiro era um eleitor alienado, não no sentido ruim da palavra, mas alienação no sentido de distanciamento, era aquele eleitor que vinha na hora da eleição, participava da festa, principalmente na era do showmício, e depois saía da política, não acompanhava o que acontecia no mundo político”, afirma Priscila Lapa. 

A cientista política destaca que a participação do eleitor é um movimento positivo, mas é necessário um lastro informacional de formação política, de entendimento do sistema político, compreensão conceitual do que é a democracia, e como ela tem que funcionar. “Eu acho que a gente chegou muito pela via da emoção, e pouco pela via da razão”, reitera Priscila. 
 
As pessoas, muitas vezes, utilizam o período eleitoral como fonte de informação e momento de formação da visão política, porém, não é aconselhável que isso aconteça, porque as coisas estão hiperinflacionadas. 
 
“O que é bom está muito bom, o candidato mudou o mundo sem ter mudado nada às vezes, ou então acontece o contrário, a desconstrução do outro a partir da percepção que ele não é mais nenhum adversário, ele virou um inimigo político, que eu tenho que combater e que eu preciso desconstruir. Ainda tem a história da lacração, você tem que ter a razão acima de tudo, tem que terminar ganhando a discussão. Ao invés da gente aproveitar o momento da eleição para nos entendermos como país, como sociedade, cada um se fecha nas suas bolhas e se eu vivo fechado na minha bolha só enxergo uma parte da totalidade que é o mundo político”, destaca Priscila.
 
Esse envolvimento da população na política e essa polarização também podem estar associados às questões de identidade e o pertencimento a um determinado grupo, como afirma o sociólogo e especialista em comportamento identitário, Ivan Novais. 

Sociólogo Ivan Novais. Foto: Arquivo pessoal 

“O indivíduo interage com seu meio a partir de códigos morais que estão previamente estabelecidos. Há uma troca de sentidos para que ele se sinta pertencido e tenha aprovação diante da sua comunidade. A identidade brasileira é um dilema civil de longa data. Há elementos de identificação que de forma intermitente esboçam uma figura nacional de reconhecimento e motivação. A identidade política está intimamente ligada a este fenômeno. Ela toma a condução dos acontecimentos cotidianos quando o embate entre valores sociais é reafirmado como objetivo civilizatório. Isso está latente no Brasil”. 

O conflito entre a moralidade evangélica neopentecostal e os grupos que defendem os direitos de igualdade de gênero é um exemplo de embate entre valores sociais. Neste cenário, a questão da legalização do aborto é motivo de “entrincheiramento” por parte desses grupos. “Temos então uma identidade forjada pelo contraste político”, acrescenta Ivan. 

Diariamente, são noticiadas cenas de violência política, como assassinatos e agressões causados e inflamados pelas divergências de opiniões e de escolha. Esse ódio e essa divisão fazem parte da destruição da democracia como um valor universal. 

“Em algum momento a gente já teve tentativas de grupos minoritários se tornarem totalitários, e aí tem as experiências históricas do nazifascismo. Tem todo esse legado nefasto que a humanidade precisa conviver e até isso, reconhecer que isso foi uma experiência negativa para a humanidade, não é mais consenso. Na revisitação desses fatos históricos há quem acredite que esses movimentos foram positivos, tanto que a gente está vendo o ressurgimento desses grupos”, explica Priscila.  

O que está por vir? 

Para muitos, a eleição está sendo um marco de vida, mas é necessário estar atento para o que vai acontecer após esse fenômeno eleitoral. Segundo a cientista, a história da política é cíclica e nunca linear, tem sempre ganhos e perdas dos dois lados. 

“As pessoas tem que se acalmar um pouco, acho que a ansiedade vem dessa tentativa de projeção do futuro, o que vai acontecer comigo, com a minha família, com a sociedade se um resultado acontecer e for desfavorável aquilo que eu acredito e as pessoas tem que ter calma de que o mundo não vai acabar, a sociedade vai continuar, a gente gostando ou não do resultado final, vamos precisar saber conviver com ele”, afirma. 

Para Priscila, é necessário estar vigilante e entender que o candidato que ganhar tem a necessidade de escutar o povo e o trabalho árduo de reconstruir o país. 

“Os representantes da gente precisam também descer um tom para entender que essa agenda cada vez mais é feita ouvindo a sociedade, ouvindo a população. A economia está aí, precisa ser reconstruída. Seja quem for que ganhe na eleição presidencial ou na eleição local precisa entender a necessidade do povo, escutar o que as pessoas querem fazer e eu acho que a gente tem um trabalho de reconstrução desse país”, destaca. 

A partir do resultado, independente do vencedor, um novo sentido e uma nova perspectiva de vida precisam ser construídos pela população. “A gente precisa chamar atenção que o day after vai acontecer e independente do vencedor é preciso reconstruir um novo sentido de vida e um novo valor, para que a gente possa amenizar e não acontecer o que a gente observou no primeiro turno, pessoas ameaçando, pessoas dizendo que iam demitir, que não vão mais contratar [devido à escolha política]”, relata o psicólogo Cleyson Monteiro.  

Essa tensão social que atinge a população nos tempos de hoje, principalmente no período eleitoral, "permanecerá enquanto seus atores políticos estiverem no palco, enredando a divisão da opinião pública para angariar capital eleitoral”, como diz o sociólogo Ivan Novais. 

“Não podemos nos referir apenas às personalidades. Tanto o lulismo como o bolsonarismo já ultrapassam a existência dos seus líderes; são convicções que têm autonomia de decisão, mas que dependem do líder de caráter carismático para terem legitimidade pública”, reitera Ivan.