Como ficam os concursos públicos com a eleição de Lula? E as carreiras policiais?
Um advogado especialista em concursos públicos, um professor de Direito Constitucional e um procurador federal analisam a situação do serviço público com a troca de presidente
Certamente as feridas deixadas pela eleição mais turbulenta após a redemocratização vão demorar para cicatrizar, mas até para os que saíram derrotados das urnas a mudança pode trazer boas oportunidades. Para servidores públicos, por exemplo, governos de direita normalmente são sinônimo de arrocho salarial e esvaziamento da máquina pública. Mas o que esperar de uma composição com perfil de centro-esquerda que precisará dialogar com a direita em um cenário político adverso no Congresso, país rachado, cofres vazios e juros estratosféricos?
O plano de governo da chapa vencedora encaminhado ao TSE dá uma mostra ao dizer categoricamente ser contra a privatização dos Correios, "uma empresa com importante função social, logística e capilaridade". O plano também garante "a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais na educação superior e nos concursos públicos federais, bem como sua ampliação para outras políticas públicas". Ou seja, o futuro governo Lula-Alckmin acena com bons ventos para os chamados ‘concurseiros’, que gastam meses, às vezes anos, batalhando por uma vaga no serviço público.
O advogado Pedro Auar, especialista em concursos públicos, lembra que o primeiro governo Lula foi recordista em abertura de vagas e que o petista deve tentar manter a estratégia. Auar observa, porém, que ele recebe um Estado sem dinheiro e, por isso, terá de priorizar áreas essenciais para seu grupo político, como Educação, Saúde e Meio Ambiente, e que carreiras policiais não devem receber a mesma atenção.
- De fato, há pouco dinheiro, tanto na esfera federal quanto estadual. Entretanto, há várias manobras das quais o governo pode se utilizar, sobretudo a vacância de cargos, para repor esse déficit de forma legal.
Já Ubirajara da Fonseca Neto, professor de Direito Constitucional da pós-graduação da Uerj e da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), acredita que, mesmo com verba curta, os concursos serão retomados por Lula, inclusive na área policial. Ubirajara aposta na capacidade de negociação do ex-presidente com o Congresso em busca de recursos, seja por readequações no Orçamento seja por créditos extraordinários.
- A área da educação, certamente, deve ser uma das mais valorizadas, com concursos não apenas para professores como também devem ser abertas vagas ao apoio à estrutura educacional, como cargos de auxiliares e técnicos administrativos. Não podemos esquecer, por fim, das estatais: sendo contrário às privatizações, de uma forma geral, Lula precisará abrir vagas para reorganizá-las enquanto parte de sua política de governo - afirma.
Expectativa para servidores públicos
O primeiro governo Lula autorizou o preenchimento de mais de 80 mil postos no serviço público, contra cerca de 24 mil no governo Bolsonaro. É verdade que as contas públicas eram mais saudáveis no início dos anos 2000 e que a pandemia prejudicou a gestão atual, mas o próprio presidente disse em agosto que reduziria o ritmo de contratações para 'proteger os atuais servidores'. Nas palavras de Bolsonaro, 'servidor não gera renda' e 'o inchaço da máquina' poderia comprometer os salários dos atuais servidores públicos. Ou seja, duas agendas bem diferentes em relação ao serviço público.
Em sabatina no 'Correio Braziliense' no dia 27 de outubro, o então candidato Lula prometeu investir sobretudo em áreas como Saúde e Educação e disse que teria que contratar mais gente para prestar um atendimento melhor à população. Disse que os "servidores públicos não receberam nenhum reajuste de salário desde 2017", situação a que classificou de "coisa absurda". Mais uma mostra de que as expectativas são boas para o funcionalismo.
Se para quem quer entrar no serviço público a esperança são os concursos, para os que já estão dentro do Estado o foco é reajuste salarial depois de um longo período de aperto. O procurador federal e professor de Direito Administrativo Daniel Almeida Oliveira diz que era esperada alguma recomposição salarial com qualquer um dos presidentes eleitos. Mas como o PT “propõe um Estado maior e uma prestação de serviço público melhor”, ele acredita que o servidor voltará a ser valorizado.
- Pela primeira vez pelo que lembro, um governo deixou o funcionalismo sem qualquer reajuste, nem mesmo alguma reposição da inflação. Mais pela saída do Paulo Guedes e menos em razão do Bolsonaro, uma vez que este também tem um histórico de apoio ao funcionalismo e sensibilidade à necessidade do serviço público pela população - opina.
Segundo o procurador, uma crítica ao governo Bolsonaro, especialmente à gestão de Paulo Guedes, é que estava fazendo redução geral do quadro dos servidores sem critério, buscando apenas reduzir o custo e reduzir o tamanho do Estado. Segundo Oliveira, essa política prejudicou setores e funções que já estavam com grande déficit de servidores, acarretando prejuízos para o país e o próprio governo.
- A redução deveria ter sido feita com critério e programação. Não do jeito que foi. Por exemplo, se queriam reduzir o ensino superior público, deveriam ir reduzindo aos poucos, de maneira a ir transformando-os em técnico, como propunham, ou dando tempo para a sua absorção pela iniciativa privada, inclusive com o apoio do governo se fosse o caso. Saúde, idem. Adoção de terceirização e tecnologia para reduzir necessidade de servidores idem.
E os concursos em andamento?
Pedro Auar aproveita para mandar um recado aos aprovados nos concursos policiais do governo federal que estão preocupados com a troca de governo. O advogado afirma que, apesar de cada caso demandar uma análise peculiar, em geral todos os candidatos classificados dentro da quantidade de vagas previstas no edital têm o direito de buscar o seu direito no atual ou no futuro governo, inclusive por meio do Judiciário.
- Nesse caso, se trata do direito subjetivo à nomeação ao cargo ao qual foi habilitado, e não mera expectativa de direito, conforme entendimento do STJ e do STF - explica.
Outro concurso que preocupa os candidatos é o dos TREs, realizado em 2017 e que teve o prazo de validade estendido até o fim do ano que vem. Ele foi prejudicado não só pela pandemia, mas também pela crise fiscal enfrentada pelo governo federal a partir de 2015. O TRE do Rio, por exemplo, chamou pouco mais de 20 aprovados, já incluídos os cotistas.
Já o governo estadual deve manter a proposta de investir na área de segurança, apesar do regime de recuperação fiscal. Além da visão programática de Cláudio Castro, Pedro Auar destaca que o setor é uma grande preocupação da sociedade do Rio e não pode ser negligenciado pelo governador, que só precisa comprovar a necessidade legal dos cargos.
Segundo o advogado, prova disso foi a realização do concurso da Polícia Civil do Rio, que, aliás, apresentou muitos problemas e provocou uma corrida ao Judiciário contra a Fundação Getúlio Vargas, banca responsável pelo certame. Apesar disso, Pedro Auar tranquiliza os candidatos que passaram em todas as etapas e ainda não foram chamados. Segundo ele, a estimativa é que todos sejam convocados dentro do período de duração do concurso e do seu prazo de validade.
De acordo com entendimento do STF, em regra, o Judiciário não pode interpretar questões de concursos, mas pode impedir ilegalidades, como cobrança de matérias não previstas no edital, e anular questões com erros grosseiros não corrigidos nos recursos administrativos. Diferentemente de questão anulada pela banca pela via administrativa, entretanto, a correção feita no Judiciário só beneficia o candidato que ganhou o recurso, explica Auar.
- Este concurso foi contaminado por questões permeadas de erros crassos, cujos conteúdos não estavam no cronograma, em flagrante ofensa ao edital. Então, o candidato não teve outra forma de buscar a tutela do seu direito se não a via judicial – diz o advogado.
Sobre as contas do Rio, o professor Ubirajara Fonseca Neto observa que o novo Plano de Recuperação Fiscal recém enviado ao Tesouro e à Procuradoria da Fazenda Nacional tem previsão para diversos concursos, não havendo, portanto, vedação à realização deles.
- O que na realidade ocorre é a participação da Fazenda Nacional nesta gestão administrativo-financeira, considerando-se o regime em curso, sem que isso constitua, por si só, alguma vedação à contratação - afirma.
Ubirajara da Fonseca Neto lembra que há concursos previstos, por exemplo, para a Defensoria Pública, a Procuradoria, o Corpo de Bombeiros, o Tribunal de Contas, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça do Rio. Já o procurador Daniel Almeida Oliveira destaca que, no plano federal, alguns pontos críticos foram atendidos pelo governo Bolsonaro, como a reposição de quadros da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Federal e da Polícia Penal Federal e, mais recentemente, dos cargos da AGU.
- Note-se que os concursos públicos estaduais e municipais nunca deixaram de ocorrer, apesar de ser justamente onde existiria ‘inchaço’ da máquina pública. Havendo caixa e orçamento, os concursos públicos federais devem ser retomados. Principalmente em relação a funções essenciais, como AGU, em que há grande defasagem principalmente do quadro de apoio – afirma Daniel Almeida Oliveira.