Futebol

Como o Catar tentou conquistar torcedores

Vários testemunhos e documentos consultados pela AFP corroboram uma operação maciça de comunicação destinada aos fãs, iniciada há dois anos pelos organizadores do evento

Catar é o primeiro país do Oriente Médio a receber a Copa - Kirill KUDRYAVTSEV / AFP

Diárias de hotel, ingressos para jogos, cartões de crédito pré-pagos... O Comitê de Organização da Copa do Mundo de 2022 convidou centenas de torcedores de todo o mundo ao Catar, incentivando-os a publicar comentários positivos sobre o país. Alguns, incomodados com esta tática, se recusaram a participar.

Vários testemunhos e documentos consultados pela AFP corroboram uma operação maciça de comunicação destinada aos fãs, iniciada há dois anos pelos organizadores do evento.

Blogueiros, influenciadores, torcedores especialmente ativos, líderes de torcidas... Desde 2020, várias pessoas receberam propostas do comitê para serem "Fan Leaders", uma espécie de representantes do Mundial do Catar para outros seguidores.

"Queríamos que fizéssemos propaganda nos tornando 'influencers' para os torcedores franceses, vendendo esta Copa do Catar", explica à AFP Fabien Bonnel, porta-voz dos Irrésistibles Français, um grupo de torcedores contactado em 2021.

"Recusamos imediatamente, engasgados com o documento. Tínhamos que utilizar as redes sociais para promover este Mundial no Catar", explica.

Embora este tipo de manobra seja habitual nos grandes eventos esportivos e culturais, a mesma gera um desconforto entre outros torcedores europeus.

"Uma coisa é certa: muitos recusaram" essas propostas, que estão "muito distantes da cultura de ser torcedor", afirma Ronan Evain, da rede Football Supporters Europe (FSE).

No entanto, outros tantos entraram no jogo, "principalmente influenciadores do TikTok", diz Evain. Mais de 450 fãs de 59 países colaboraram com o programa, reconhece o Comitê de Organização, afirmando que não se trata de uma "estratégia ilícita, que consiste em pagar torcedores convidados em troca de uma propaganda coordenada".

Trata-se de um "papel não remunerado e voluntário", "sem nenhuma obrigação de compartilhar conteúdos proporcionados pelo comitê", acrescenta.

Mas sob quais condições? O código de conduta assinado por esses "Fan Leaders", do qual a AFP obteve uma cópia, cita "bons princípios de publicação" a se respeitar nas redes sociais.

"Suas opiniões são de vocês", indica o documento, que ressalta que "não seria evidentemente apropriado difamar o Catar, o Comitê de Organização e o Mundial".

Um bom "Fan Leader" deve também "apontar", "capturar" e depois "apagar" todo comentário "ofensivo, degradante ou abusivo" contra o Comitê de Organização que possa chegar de seu público.

Em troca, o Catar oferece a esses "Super Fans" várias vantagens segundo um documento: "ingressos para os jogos e eventos", "presentes", visitas aos estádios e outros convites, como por exemplo ao sorteio dos grupos, que aconteceu em abril.

"Acompanhamos em suas redes os que foram lá: mostraram todas as maravilhas do Catar. Era propaganda do Catar, não do Mundial", considera Fabien Bonnel.

Fortalecido por esta ampla rede de "torcedores-influencers", o Comitê de Organização prepara outra leva de convites nas últimas semanas: entre 30 e 50 pessoas para cada país classificado, selecionados por esses "Fan Leaders", foram convidadas para viajar com tudo pago para assistir à cerimônia de abertura no dia 20 de novembro. Também neste caso, muitos se recusaram a participar.

O Comitê de Organização lembra também que esses torcedores vão "de maneira voluntária e sem remuneração" e afirma que se trata de "agradecer por sua colaboração".

Mas em um documento transmitido a estes convidados, os fãs também são incentivados a participar de alguma forma do show da cerimônia de abertura.

"Espera-se que vocês se levantem, cantem e agitem suas bandeiras" na frente das câmeras.

O Comitê de Organização contempla escolher ele mesmo a música atribuída a cada país, antes de distribuí-las pelas delegações, "para garantir que sejam familiares".

Como contrapartida, a passagem de avião de ida e volta está paga, assim como a hospedagem em "apartamentos" equipados com "quartos duplos", explica o documento. São "US$ 68 (aproximadamente R$ 350, na cotação atual) por dia" para cada convidado para "comida, bebida, lavanderia", mediante um "cartão de crédito pré-pago" que será entregue junto com o ingresso para o jogo de abertura do Mundial.

"Levando em conta os preços, a distância e o incômodo em torno desta Copa, o tipo de torcedor não será o mesmo de uma Copa clássica. Devemos tentar levá-los aos estádios", analisa uma fonte próxima da Federação Francesa de Futebol (FFF).

"Acho que precisam de cores na cerimônia de abertura, torcedores com camisas. Se bem filmado, isso pode ter algum efeito", disse.

Vários torcedores afirmam à AFP que esses convites eram para mais do que para o jogo de abertura: "O Comitê de Organização pede (aos "Fan Leaders") que compareçam a pelo menos dez dias", afirma Hervé Mougin, presidente dos Irrésistibles Français.

Esses convites levantam questionamentos. "Compram os torcedores, esse é seu plano de ação. Cruzamos uma linha, é simplesmente ridículo. Não é essa a imagem dos torcedores que queremos representar. Não vale tudo por dinheiro", se queixa um torcedor muito ativo no cenário europeu.