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É um crime a dúvida que colocaram na população sobre vacinas, diz Dráuzio Varella

Médico que integra a equipe de transição do governo afirma que a prioridade do novo governo deve ser a retomada da assistência básica para doenças crônicas

Vacina contra Covid-19 - Rovena Rosa / Agência Brasil

Escalado pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para atuar na equipe de transição na área da saúde, o médico Dráuzio Varella defende como uma das principais medidas a serem adotadas pelo novo governo a reformulação e reforço na assistência básica para o acompanhamento de doenças crônicas, responsáveis pelo maior número de mortes no Brasil. O médico falou ao GLOBO sobre a importância de uma gestão na Saúde sem interrupções, como trocas de ministros, para a continuidade e eficiência das políticas públicas e criticou a nomeações de pessoas não técnicas para o posto.

"O que eu tenho sugerido é escolher um ministro da Saúde bem escolhido e deixar lá por quatro anos. Só sai de cometer crime. Fora disso, não pode. Tem gente boa na Saúde. Padilha foi um bom ministro, Temporão foi um bom ministro. Preparados, com experiência. Não pode é chegar nessa hora e fazer um acordo com partido e indicar deputado" afirmou o médico citando ex-ministros que também atuam na transição.

Como o senhor está colaborando para a transição?
O que me pediram foram algumas sugestões para dar para a equipe da transição, que poderão aceitar ou nem levar em consideração. Estamos sugerindo os problemas que devem ser atacados, quais devem ter prioridades. Porque o SUS tem diversos problemas, um problema sério de financiamento, mas com o dinheiro disponível ele pode ser melhorado.

E qual é o diagnóstico do senhor sobre isso?
O SUS tem inúmeros problemas, mas acho que o foco principal é a atenção básica. É a estratégia de saúde da família, que seguramente é o maior programa de saúde pública do mundo. Hoje são atendidas 164 milhões de pessoas. Quando você olha quais hoje são os problemas principais de saúde no Brasil são doença cardiovascular e câncer. São as duas principais causas de morte. Quando o SUS foi criado, o objetivo era curar as pessoas. Hoje, com a mudança da faixa etária da população e do perfil epidemiológico, passamos a ter as doenças crônicas, que são as principais causas de problemas médicos, como hipertensão e diabetes. Nessas doenças, o objetivo não é a cura, porque elas são incuráveis. O objetivo é o controle. E o controle depende de um acompanhamento. Não adianta dar a medicação e a pessoa não voltar mais. A pessoa para de tomar, acha que já controlou. E aí você vai ter as complicações, que são caras. E não há dinheiro no mundo para tratar as complicações dessas doenças.

Uma prioridade, então, seria reformular a atuação do SUS?
A atenção básica está montada. Precisa montar essas equipes. Precisam de suporte para funcionarem direito. Se não, não é possível acompanhar. Você tem que treinar, dar suporte e aumentar o número de profissionais nessa área. Estudos mostram que onde funciona a atenção básica, as internações hospitalares caem 90%. Essas doenças crônicas, qual é o impacto da medicina nessas doenças? 30% das doenças crônicas têm a ver com habitação, saneamento básico, poluição, tempo que passa da condução, tempo que tem para chegar no emprego, salário. Se você não ganha suficiente para se alimentar direito, claro que vai ter problemas. 50% dependem do estilo de vida. As pessoas são sedentárias, fumam, bebem, não tomam precaução com a saúde, se alimentam mal. Sobraram 20% para a medicina. No SUS, o atendimento muitas vezes é por ordem de chegada, não por prioridade. Não priorizamos o caso por prioridade. Isso é só um detalhe. O problema é o acesso, que fica complicado.

Hoje, a fome voltou ao país. Quais problemas isso traz para a saúde e como responder a esse problema?
Quando você não alimenta uma pessoa, ela vai ter uma série de problemas. Porque o sistema imunológico não vai funcionar direito, vai ter infecção atrás da outra, se ela não se alimenta é porque ela vive em situações precárias, sem água encanada, sem saneamento básico. É um conjunto de fatores. Além do que, do ponto de vista humano, é inaceitável para um país rico como o Brasil ter pessoas passando fome.

Por que os índices de vacinação estão tão baixos?
São vários motivos. O Brasil tem o maior sistema de imunização gratuita do mundo. Isso é reconhecido. Temos cerca de 40 mil salas de vacinação, com geladeira, termômetro, a pessoa encarregada da vacinação. Tudo organizado, sempre foi. Esse movimento antivacina era ridículo, atingia pouquíssimas pessoas. Um número insignificante. Olha o que aconteceu na covid: teve campanha contra a vacina, e deixamos de fazer campanhas pela vacinação. Você conversa com sanitaristas e não existe vacinação sem campanha. No Brasil não havia discussão. Chegava na data, os pais levavam seus filhos para vacinar. Tinham alguns problemas com a vacinação de adultos, mas crianças eram todas vacinadas. Quando você começa a colocar problema nas vacinas, você cria uma dúvida na população e isso tem acontecido gravemente no Brasil. Por outro lado, quando você tem uma doença que praticamente desapareceu ou está desaparecida, as pessoas também perdem a motivação. É o caso da poliomielite e do sarampo. O ponto fundamental é a dúvida das vacinas. Não havia dúvida. Essa dúvida que colocaram na população foi um crime. Não consigo encontrar outra palavra.

É possível reverter esse quadro rapidamente?
Acho que isso depende da vontade política. Você ataca através da educação. É aí que entra o papel da imprensa, comunicação em massa. Olha o que fizemos com o cigarro no Brasil. Na minha adolescência, 60% das pessoas fumavam. Hoje, o Brasil é um dos países que menos fuma no mundo. Não somos mais letrados do que a população europeia e americano? Fizemos grandes campanhas governamentais contra o tabagismo? Nada. Foi a televisão, programas, entrevistas com médicos para falar dos problemas. Temos menos de 10% de fumantes na população hoje. O que mudou? A educação. É aí que tem que agir. As pessoas tem que se convencer que tem que abandonar certos hábitos, comportamentos.

A transição também tem falado da saúde mental, que perdeu espaço no Ministério atual…

O que mais me dói é que o SUS tem tudo. Não precisa inventar nada. O SUS tem os CAPS, que fazem esse atendimento. Mas são insuficientes para lidar com o nível de complexidade que é a saúde mental hoje, especialmente depois da pandemia. O número de casos de ansiedade, depressão, aumentou, mas já vinham de antes. Em 2015, A OMS já tinha estimado que a partir da década de 20 teríamos a depressão como a principal causa da falta do trabalho. Ai veio a pandemia, com as pessoas trancadas em casa, medo, insegurança, insegurança financeira, que agravou. Agora, a pequena estrutura que o SUS estava começando a montar ficou insignificante frente às necessidades da população.

E o que mais a gente aprendeu com a Covid, além da importância da educação para a vacinação e a importância da estrutura para saúde mental?
A pandemia mostrou a importância do SUS. Para a população, o SUS é a imagem da TV. Pronto socorro cheio, gente reclamando, doente sentado no chão. O SUS tem níveis de excelência, atendimentos maravilhosos. É o maior programa do mundo para transplantes de graça. Você sofre um acidente, aparece uma ambulância do SUS para te socorrer. Ninguém sabe que o resgate é o SUS que está chegando ali. Na pandemia aprendemos a importância do SUS. Imagina se não existisse o Sistema Único de Saúde? Depois, aprendemos que é possível organizar rapidamente essa estrutura. Pandemia foi de uma hora para outra. O SUS se virou do jeito que deu e fez um trabalho maravilhoso. Temos a estrutura, mas temos que levar a saúde a sério. Ter um compromisso político com a saúde, ter política de saúde. O Brasil não tem.

Por quê?
De 2008 a 2018, tivemos 13 ministros da saúde em 10 anos. Não estou pondo o Bolsonaro no meio. A média de permanência no cargo era de 10 meses. O que você faz em 10 meses? Quando o ministro começava a entender o SUS, ele saía. Isso atrasa. E tem um outro problema: quem foram esses ministros da Saúde? Quais deles foram sanitaristas, que entendem de administração pública? Não. É para obter maioria na Câmara, então dá saúde para um deputado. O que essas pessoas entendem de saúde pública? Zero. Nada. E você substitui por um outro que também não tem noção nenhuma. E o Ministério tem uma equipe de gente competente. Não é uma área que falta conhecimento e cabeças pensantes. Mas os caras desanimam também porque o chefe é um ignorante que foi colocado lá por um ministro que não entende nada. O que eu tenho sugerido é escolher um ministro da Saúde bem escolhido e deixar lá por quatro anos. Só sai de cometer crime. Fora disso, não pode. Tem gente boa na Saúde. Padilha foi um bom ministro, Temporão foi um bom ministro. Preparados, com experiência. Não pode é chegar nessa hora e fazer um acordo com partido e indicar deputado

E quais serão os desafios para recuperar o Ministério da Saúde?
O fato é que na situação em que estamos, o Ministério da Saúde desarticulado, isso vai dar um trabalho grande de restabelecer. Desorganizar é fácil. Reconstruir demora um tempo.