Recomeços

Ano Novo: é possível se reconciliar após divergências políticas?

Após eleições intensas, especialistas falam sobre a importância de retomar laços ou conviver pacificamente

As pessoas devem avaliar a possibilidade de reconciliação - Alfeu Tavares/Folha de Pernambuco

“Ano novo, vida nova”. Essa é, sem dúvidas, uma das frases mais famosas desta época, quando celebramos a chegada de um novo ano. Com ele, vem as expectativas, os desejos, os planos, os recomeços. E 2023 chega carregado de simbologias: o primeiro Réveillon sem restrições desde o início da pandemia; marcará o retorno do Carnaval após dois anos suspenso também em razão do coronavírus; e abrigará, já neste domingo, primeiro dia do ano, a posse do novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, eleito para o seu terceiro mandato, e da primeira governadora do Estado de Pernambuco, Raquel Lyra.

No âmbito nacional, as últimas eleições tiveram um acirramento intenso, que se refletiu, inclusive, na ruptura de relações familiares e sociais. Um país dividido, como demonstrou o resultado das urnas, mas que, defendem os especialistas, precisa encontrar uma forma de voltar a viver em harmonia.

E não haveria tempo mais propício para uma mudança de comportamentos do que aquele simbolizado pela virada de ano, pelo marco mais característico de um recomeço. Poderíamos considerar, então, 2023 como o ano das possíveis reconciliações sociais?

Como explica o sociólogo Josias de Paula Júnior, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), as posições políticas interferem de modo variado nas relações sociais, a depender do tempo, do contexto e dos grupos a que pertencem os indivíduos.

“Existem aqueles grupos que se deixam capturar completamente pela paixão política. Outros, não. Estes separam com muita clareza suas experiências em outros campos, como arte, entretenimento, relações amorosas, futebol, etc., das pressões políticas. Estas pessoas são menos vulneráveis a viver conflitos e perdas determinadas pela paixão política. Todo aquele que encara a vida como uma disputa política total, sem trégua, sem refúgio, tende a ser mais radical, menos flexível e mais propenso a viver rompimentos na vida privada derivados das questões públicas”, comentou.

Para o pesquisador, o caminho para uma retomada de relações passa pelo entendimento de que é necessário respeitar opiniões divergentes. “Claro que é melhor para todos retomar a vida reatando laços abalados pela rivalidade política. Mas isso, em última instância, é uma decisão individual. Para mim, por trás do fato mais explícito, as brigas e rompimentos de relações, se esconde um outro: a baixa cultura democrática do país. Democracia é fundamentalmente o respeito e o convívio com a diferença, com aqueles que pensam diferente de você”, disse.

Josias de Paula Junior, sociólogo e professor da UFRPE - Foto: Divulgação

Um dos fatores que intensificou as rivalidades, avalia, foi o uso maciço das redes sociais como ferramentas de debate político, realidade que vem se firmando nos últimos anos. “As redes sociais catapultaram ao debate uma multidão que não costumava tomar parte na política. Era silenciosa e silenciada. Esse emergir de camadas historicamente afastadas, sem voz, nas disputas discursivas, empresta um furor, uma intensidade e um calor ao cenário político talvez jamais visto. Não é um fenômeno local, brasileiro. O mundo experimenta essa agitação.” 

Cientista política, Priscila Lapa também concorda que as discussões online ampliaram a dimensão do acirramento político. “Algumas fissuras foram criadas desde 2018, não foram só em 2022, elas foram muito aprofundadas com o passar do tempo. Então, deixou de ser apenas um evento eleitoral para se tornar realmente uma forma, um conjunto de valores, de comportamentos políticos dos cidadãos. Isso não se reverte tão rapidamente”, pontuou.

“O que aconteceu em 2018 [eleições presidenciais com forte campanha online] teve a ver com o hiperativismo político provocado pelas redes sociais, que até então a gente não tinha no Brasil. A gente tinha historicamente, nos estudos da sociologia, da ciência política, uma visão de um eleitor muito apático, que era aquele eleitor que participava do processo eleitoral de forma muito intensa, mas passadas as eleições ele nem lembra direito em quem votou, principalmente para o Legislativo. Essa era mudou, as redes sociais trouxeram essa convivência do cidadão com a esfera política de forma mais intensa. Acho que passado essa grande ferida que se abriu no Brasil, a gente vai amadurecendo e vai conseguindo dialogar, conviver um pouco melhor com essas divergências”, acrescentou.

Priscila Lapa, cientista política - Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco

Segundo a especialista, é pouco provável que as rupturas sejam sanadas de imediato, mas a médio prazo, as rivalidades podem dar espaço a consensos.

“Num primeiro momento, eu acredito que a tensão ainda vai estar muito no ar. Depois a gente vai entrar talvez numa era do que pode se chamar de mais normalidade, que seria uma era com menos tensão política do que a gente via até então. Acho que ainda vai levar um tempo. Existem fissuras que foram muito aprofundadas e há muita tensão no ar. Então, é preciso que seja criado um clima favorável para que sejam criados alguns consensos que possam reintegrar as pessoas. Uma agenda econômica eficiente, por exemplo”, apontou.

A psicóloga Fernanda de la Torre reforça que a retomada de vínculos após os desgastes e rompimentos causados devido a embates políticos deve ocorrer a partir de um desejo genuíno das pessoas envolvidas, especialmente porque algumas questões envolvem ideologias e formas de ver o mundo.

“Uma divergência se constrói a partir das duas partes, para se reconciliar isso também vai precisar do movimento das duas partes, de toparem estarem juntas. Toparem reconstruir esse laço, toparem se acertar também. Então, claro, a gente pode pensar num lugar de ‘poxa, o que que eu posso fazer aqui?’. Eu posso repensar minhas atitudes, repensar meus posicionamentos, repensar minhas ações, o que eu aceito, o que eu não aceito”, analisou.

Feranda de la Torre, psicóloga - Foto: Alexandre Aroeira/Folha de Pernambuco

Essas reflexões podem ser usadas nas buscas por retomadas dos mais variados laços sociais. “Precisamos de diálogo, respeito, abertura para ouvir o outro. Você não precisa nem concordar, mas você precisa estar aberto para ouvir a perspectiva do outro também, ter essa disponibilidade. Você tem que estar disposto a manter o vínculo, qualquer vínculo, de amizade, de família, de relação, profissional, amoroso. Você tem que estar muito disponível a sustentar, a botar tua movimentação e tua energia nesse vínculo também. Então, isso precisa estar presente e saber acolher o que vai vir do outro. É sempre uma troca”, disse.

Nos casos em que uma reconciliação social se mostra pouco viável devido às grandes diferenças entre as pessoas envolvidas, é preciso buscar, então, uma convivência pacífica.

“Discordâncias fazem parte das relações, mas, mesmo diante das discordâncias, o respeito deve ser um ponto fundamental. Saber respeitar os limites do outro e os próprios limites são pontos importantes na dinâmica das relações. Saber que nem sempre o outro irá concordar com as nossas opiniões, valores e perspectivas mas, se a convivência pacífica for algo em acordo, manter o respeito e os limites se fazem importantes, além de evitar entrar em conflitos, entrar em discussões onde não há construção de diálogo”, concluiu.