BRASIL

Saiba por que minuta sobre intervenção no TSE achada na casa de Torres tinha teor golpista

Documento previa medidas como a quebra de sigilo de ministros do TSE e a formação de uma comissão chefiada pelo Ministério da Defesa

O então ministro da Justiça, Anderson Torres, com o ex-presidente Jair Bolsonaro - Reprodução

Com a prisão decretada sob suspeita de ter sabotado o planejamento de segurança no Distrito Federal no domingo, propiciando as invasões golpistas na Praça dos Três Poderes, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres mantinha em sua casa o esboço de um decreto que permitiria ao ex-presidente Jair Bolsonaro fazer uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para interferir no resultado das eleições do ano passado, da qual saiu derrotado.

O documento determinava a implementação do “estado de Defesa” na Corte e foi encontrado na última quarta-feira, quando a Polícia Federal cumpriu um mandado de busca e apreensão na residência dele por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

O texto da proposta, cuja íntegra foi divulgada pelo jornal "Folha de S.Paulo", faz referências explícitas à corrida ao Palácio do Planalto. Ele diz, por exemplo, que a medida tem por objetivo preservar "a lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022".

A iniciativa planejada, contudo, não tem respaldo legal. O professor de Direito Constitucional Georges Abboud esclarece que a função de um decreto de defesa, como o sugerido na minuta, é restabelecer a estabilidade institucional em situações muito graves e particulares. O especialista cita como exemplos casos de catástrofe natural, greves de policias ou atos de terrorismo em alguma localidade.

— A decretação não teria fundamento legal algum e só poderia ser interpretado como retórica golpista — assegura Abboud.
 

Abaixo, confira item a item as razões que reforçam o teor golpista do decreto.

A finalidade em si
O texto do decreto vai ao encontro do discurso proferido por Jair Bolsonaro ao longo de seu mandato. Enquanto chefiou o Planalto, ele deu sinais de que estaria disposto a não aceitar o resultado da eleição, caso derrotado. Sem jamais apresentar provas, o ex-presidente fez reiterados ataques às urnas eletrônicas e alardeou supostas fraudes. Ao intervir no TSE sem nenhuma justificativa concreta, e sem qualquer indício de ilegalidades no pleito, Bolsonaro transformaria em gesto prático a retórica golpista dos anos anteriores.

O instrumento utilizado
Os especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que o estado de defesa é um instrumento legal à disposição do chefe do Executivo. Alertam, porém, que ele não pode ser decretado sobre um órgão do República, como o TSE, somente sobre uma determinada região ou localidade, como explicou o professor Georges Abboud. O jurista Luiz Fernando Pereira, coordenador geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, vai na mesma linha:

— Não existe estado de defesa em uma instituição, isso seria uma excrescência — assegurou, categórico.

A quebra do sigilo de ministros
Ao longo dos últimos quatro anos, Bolsonaro tratou como inimigos o Judiciário e, em especial, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), alvos constantes de declarações enérgicas, inclusive xingamentos e ofensas. Neste sentido, Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do TSE, tornou-se um dos principais antagonistas do então presidente. Portanto, a suspensão prevista no decreto do "sigilo de correspondência e de comunicação telemática e telefônica" de magistrados da Corte eleitoral, além de ilegal, miraria desafetos pessoais do ex-chefe do Executivo.

O controle do espaço físico
A minuta encontrada na casa de Anderson Torres previa até mesmo o controle do "acesso às dependências do Tribunal Superior Eleitoral". O texto frisava ainda que "entende-se como sede" do TSE "todas as dependências onde houve tramitação de documentos, petições e decisões acerca do processo eleitoral presidencial de 2022, bem como o tratamento de dados telemáticos específicos de registro, contabilização e apuração dos votos coletados por urnas eletrônicas em todas as zonas e seções disponibilizadas em território nacional e no exterior". O documento também abria a possibilidade de que a validade das determinações fosse estendida "às sedes dos Tribunais Regionais Eleitorais".

O sistema eleitoral nas mãos de militares
O decreto determinava a criação de uma "Comissão de Regularidade Eleitoral" chefiada pelo Ministério da Defesa, que nomearia outros sete integrantes do grupo, de um total de 17 membros. A pasta à qual estão subordinadas as Forças Armadas era comandada à época pelo general do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. A medida colocaria, assim, o controle do sistema eleitoral nas mãos de militares, um dos grupos mais alinhados ao bolsonarismo.

A proibição de contestação na Justiça
O texto antecipava até mesmo prováveis investidas na Justiça contra o teor do decreto. "Qualquer decisão judicial direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral terá seus efeitos suspensos até a finalização do prazo estipulado" pela duração da intervenção no TSE, que duraria 30 dias, podendo ser prorrogada por igual período.