Entenda, em cinco pontos, a crise que levou Lula a demitir o comandante do Exército
Proliferação de militares em cargos civis no governo, ameaças golpistas e falta de alinhamento com Júlio César de Arruda levaram à troca de comando
Ao longo dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), a presença de militares em cargos civis mais que dobrou, com presenças em postos-chave, como a chefia do Ministério da Saúde durante a pandemia.
O cenário incomodava Luiz Inácio Lula da Silva (PT), agora à frente do Planalto, desde antes da campanha eleitoral. Em abril de 2022, o petista disse que teria que tirar “quase 8 mil membros das Forças Armadas” de cargos comissionados, caso fosse eleito.
O alinhamento de grande parte dos militares ao bolsonarismo e a expansão dos acampamentos golpistas em frente a quartéis fez com que esse incômodo crescesse gradativamente até a demissão de Júlio César de Arruda, neste sábado, do comando do Exército. O estopim, no entanto, passou por um aliado fiel de Bolsonaro, em um dos últimos movimentos do ex-presidente no poder.
Veja cinco pontos que levaram Lula a demitir o comandante do Exército:
1 - Chegada em massa ao governo
Uma das grandes marcas do governo Bolsonaro foi o protagonismo de militares em assuntos civis, algo que acompanhou o ex-presidente durante sua campanha eleitoral em 2018. Além do vice, o general da reserva Hamilton Mourão, e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, no primeiro ano de governo, por exemplo, eram sete ministros egressos das Forças Armadas, dentro de um total de ao menos 41 militares em cargos no segundo e terceiro escalões.
O cenário avançou ao longo dos quatro anos seguintes, com a escolha de Eduardo Pazuello chefiar a saúde em um dos momentos mais críticos da pandemia, o protagonismo de Walter Braga Netto à frente da Casa Civil e a tomada do Gabinete de Segurança Institucional, chefiado por Augusto Heleno, por militares. Em 2021, o número de membros das Forças Armadas em cargos civis já havia mais que dobrado e, ao fim do mandato de Bolsonaro, eram cerca de oito mil nomes nomeados nesses postos.
O cenário causou incômodo em Lula, manifestado explicitamente ainda em abril, antes do início do período eleitoral, durante encontro na sede da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Na ocasião, o petista disse que, caso eleito, teria que “ tirar quase 8 mil militares que estão em cargos de pessoas que não prestaram concurso”.
— Isso não pode ser motivo de bravata, tem que ser motivo de construção — disse, dias depois de ter afirmado que “o papel dos militares não é puxar saco de Bolsonaro nem de Lula”, mas “para proteger a fronteira e o país de ameaças externas”.
Já durante a transição de governo, inclusive, causava preocupação na equipe de Lula a presença em massa de militares no GSI, responsável pela segurança pessoal do presidente da República, do vice e seus familiares, além de coordenar atividades de inteligência federal. Também houve discussão de deixar o órgão abaixo de uma estrutura comandada por um civil, o que não foi adiante.
2 - Incômodo pós-eleição
A situação se agravou ainda mais com os apelos de bolsonaristas, já depois das eleições do ano passado, para que as Forças Armadas assumissem o comando do país, destituindo o presidente eleito, Lula. Os discursos, de teor naturalmente golpistas e sutilmente orquestrados por Bolsonaro, tinham entrada especialmente em militares com baixas patentes, ou membros da reserva.
No fim de novembro, por exemplo, um militar da Marinha lotado no GSI gravou vídeo em um ato antidemocrático e disse “ter certeza” de que Lula “não sobe a rampa”, em referência à posse presidencial do petista, que transcorreu normalmente no primeiro dia deste ano. Discursos similares contra o resultado nas urnas eram propagados nas redes sociais.
E mesmo ainda durante o período pré-eleitoral, Pazuello, que naquele momento era general da ativa, chegou a participar de um ato em favor do ex-presidente, por exemplo.
3 - Acampamentos golpistas
O cenário, portanto, já de desconfiança de Lula com os militares teve ainda outro ponto de ebulição: a proliferação dos acampamentos bolsonaristas ao redor do Brasil, e em frente a quartéis. No caso do general Júlio César de Arruda, que assumiu o Exército como interino no penúltimo dia do governo Bolsonaro, as instalações bolsonaristas em Brasília foram ainda mais determinantes para a decisão do petista.
Segundo O GLOBO apurou, contribuiu para a demissão de Arruda a falta de alinhamento do general com Lula e o comportamento do militar diante dos acampamentos na capital federal. Arruda teria protelado a desocupação dos alojamentos, ao contrário do que queria o presidente. E Lula já havia criticado o que chamou de conivência do Exército com os terroristas que invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Arruda teria ainda sido resistente à tentativa de pacificação da relação entre o presidente e o Exército.
O desconforto foi reforçado neste sábado pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, após a demissão do general. Ela explicou que “Lula busca uma concepção legalista e que acate a hierarquia suprema do presidente”, e citou os acampamentos como um dos exemplos do desconforto.
4 - Atos golpistas de 8 de janeiro
O ponto mais crítico foram os atos golpistas de 8 de janeiro, quando manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram os prédios da Praça dos Três Poderes. No dia seguinte, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, pontou que existia desconfiança no governo federal de contaminação de indivíduos das Forças Armadas pelo bolsonarismo, mas não sobre a instituição.
Três dias depois, Lula deu outro recado de sua insatisfação, ao afirmar, durante café da manhã com jornalistas no Planalto, que a porta do palácio presidencial havia sido "aberta para essa gente entrar", em referência aos manifestantes golpistas. Na ocasião o presidente deixou claro o entendimento de que a entrada dos invasores foi facilitada e disse que havia "gente das Forças Armadas aqui dentro conivente" com a depredação do local.
A presença de militares como manifestantes nos atos golpistas também contribuiu. Já na última quarta-feira, em entrevista à GloboNews, Lula falou sobre o assunto e disse que “quem quiser fazer política, que tire a farda, renuncie a seu cargo, crie um partido político e vá fazer política”.
5 - Coronel Cid
Diante de todo o caos instaurado após os atos golpistas, o que contribuiu para a demissão de 80 militares do governo em cinco dias nesta semana, a gota d’água para que Arruda deixasse o comando do Exército passou pelo tenente-coronel Mauro Cid, que foi o ajudante de ordens de Jair Bolsonaro durante todo o seu mandato.
Ainda em maio de 2022, com Bolsonaro, Cid foi escolhido para o comando do 1º Batalhão de Ações e Comandos, unidade de Operações Especiais, mas só assumiria em fevereiro deste ano. Dado o alinhamento do ex-ajudante de ordens com o ex-presidente, no entanto, o Planalto já havia indicado que esperava que Arruda anulasse a nomeação.
Lula determinou a imediata remoção do tenente-coronel do comando do batalhão. Arruda, no entanto, se recusou a cumprir a ordem. Como informou o colunista do GLOBO Lauro Jardim, o general também disse a vários interlocutores militares nos últimos dias que não aceitaria se fosse expedida uma ordem de prisão contra Cid, que é investigado por Alexandre de Moraes num inquérito que corre no STF.
Filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, que foi colega de Bolsonaro no curso de formação de oficiais do Exército, o tenente-coronel tem um histórico de relacionamento com o ex-presidente, o que inclui afinidades familiares. Seu nome ganhou notoriedade nesta sexta-feira, após reportagem de Rodrigo Rangel, do portal Metrópoles, apontar que investigações da PF, sob o comando do Supremo Tribunal Federal (STF), apuram se o ajudante de ordens do ex-presidente operava uma espécie de “caixa paralelo”. O ex-presidente Bolsonaro nega as informações.