Especial Frevo

Frevo: Tradição em Movimento - Parte 2

Dando continuidade ao caminho desbravado pela geração dos maestros Spok e Forró, há mais de 20 anos, novos artistas revigoram o frevo

Orquestra Malassombro reúne jovens artistas em torno de um frevo de bloco contemporâneo - Divulgação

Comparado a outras tradições culturais milenares, o nosso centenário frevo ainda é uma criança que tudo observa e absorve. Criança visionária, mirando o futuro e construindo um presente de constante novidade. Foi assim quando Nelson Ferreira revolucionou a marcha pernambucana, na origem do frevo, por exemplo, em 1922, ao gravar a música "Não puxa a Maroca" com arranjos muito avançados para o seu tempo. Mais tarde, na década de 1950, compôs a trilogia "Gostosão", "Gostosinho" e "Gostosura", obras que são divisoras de águas para o gênero e celebradas até hoje por sua modernidade.

"O frevo o tempo todo está pensando no presente. O que está acontecendo e que me inquieta? O que me tira do lugar? Isso é refletido tanto na música, no contar de uma história no frevo de bloco, que o frevo canção traduz nas letras; e que o frevo de rua com um arranjo provoca a gente a mudar de situação, de energia e de sentimento. (...) Então, é muito natural pensar quando a gente tem uma proposta de renovação ou de inclusão de um novo elemento - porque na história do frevo isso sempre esteve em evidência", comenta o historiador Luiz Santos, gerente de memória e exposições do Paço do Frevo.

Afinal, o que é tradicional e o que é moderno quando se trata de uma manifestação que ainda busca consolidar sua identidade e que tem, desde sempre, a capacidade antropofágica de costurar uma diversa colcha de retalhos que é a nossa cultura popular? Para responder a essa e outras  perguntas, entrevistamos maestros e artistas que, de 30 anos para cá, colaboram para renovar a tradição do frevo pernambucano.

Spok levou sua SpokFrevo Orquestra para os principais festivais do mundo | Foto: Paullo Almeida

Spok Frevo Orquestra: da rua para os festivais 
Inaldo Cavalcante de Albuquerque, o Maestro Spok, bebeu desde cedo na fonte da tradição do frevo, influenciado pelo gosto por Carnaval de seus pais, Seu Nilo e Dona Nair. Pernambucano natural de Igarassu, começou a se interessar pelo Carnaval ainda criança. "Essas memórias todas estão presentes dentro do meu corpo. Na rua da Assembleia, onde eu morava, lá passava La Ursas, Maracatus, orquestras de frevo, caboclos de lança e caboclinhos em frente a minha casa", recorda. 

Ele começou a estudar música em Abreu e Lima, na Escola Polivalente, com o professor Maninho, onde teve os primeiros contatos com o frevo. Do seu tio Pessoa, herdou o interesse pelo instrumento que viraria sua marca. "Aos poucos, comecei a tocar saxofone também e fiquei mais próximo do meu tio, que me levava para a orquestrinha dele, juntamente com Gilberto, o Giba, que até hoje está na SpokFrevo, é fundador da orquestra juntamente comigo", lembra. 

"As primeiras influências que eu tive do frevo, mesmo sem ter muita consciência, eram os discos que eu tinha de Nelson Ferreira que meu pai colocava no Carnaval. Expedito Baracho, Claudionor Germano, Levino Ferreira tocava no carnaval antes de eu estudar música. E isso já estava me influenciando sem necessariamente ter que estudar. Depois que eu comecei a estudar música, tive várias influências de maestros - não consigo citar todos aqui, mas cito sete deles que estão no nosso documentário "Sete Corações": os maestros José Menezes, Nunes e Guedes Peixoto (in memorian), e os maestros Clóvis Pereira, Duda, Edson Rodrigues e Maestro Formiga", conta Spok.

Depois de aprender ouvindo e tocando com os grandes mestres, Spok sentiu a necessidade de dar um próximo passo dentro do frevo. "Eu nasci e me criei tocando frevo nas ruas, nos clubes e depois nos palcos da cidade. Mas como músico, sempre me incomodava um pouco o fato da gente não estar fazendo a nossa música no teatro. Tocando ela com silêncio absoluto. E o sonho da gente era tocar em festivais de música instrumental, que a grande maioria tem o nome de Festival de Jazz, onde a liberdade e a improvisação é muito apreciada por quem frequenta", explicou. 

Em 2001, Spok criou a Spok Frevo Orquestra, que abriu o caminho para levar o gênero para o centro de grandes festivais instrumentais pelo mundo. Com músicos vestidos de terno e gravata, sem passistas e com uma formação voltada para música instrumental em grandes teatros e palcos. Sua ideia era dedicar um disco inteiro para essa experimentação e assim o fez, com grande repercussão no Brasil e em outros países por onde passou.

"Resolvemos pegar o frevo, que é uma música poderosa de uma linguagem absurdamente pernambucana e brasileira, uma música que pode-se dizer que, de certa forma, ao lado do choro, talvez sejam as duas únicas músicas instrumentais genuinamente brasileiras. E a gente resolveu dedicar um disco com todas as faixas preparadas e arranjadas com a intenção da improvisação", detalhou Spok, lembrando que outros mestres já fizeram isso com o frevo antes dele, de forma pontual, a exemplo de Sivuca, Dominguinhos, Felinho, Maestro Menezes. 

"As pessoas consumiam o frevo com aqueles flashes de televisão, o frevo na rua com muito poder. E quando a gente lançou essa proposta de todo mundo inclusive estar de paletó e gravata e sentado, sem folia, sem colorido e sem passistas, o povo estranhou muito isso. Mas, quero dizer que nós realizamos grandes sonhos. Os principais festivais de jazz do país e do mundo inteiro a gente já participou", conta Spok.

Passamos a ter contato com músicos do jazz norte-americano e mundial, dividindo hotel e palco com eles. Passamos a conviver com músicos que a gente só via em fita de VHS. Foram várias, dezenas de turnês pelo mundo. Chegamos até a realizar um festival chamado 'Do frevo ao jazz' e trouxemos para cá a Lincon Center, a orquestra com Wynton Marsalis. Músicos que a gente só via em fita de vídeo, a gente estava dividindo programações pelo Brasil e pelo mundo", comenta.

Com boa parte dos sonhos como artista e fazedor de frevo realizados, ele ainda sonha grande. "O grande propósito era levar o frevo para o mundo. O improviso era só mais um sonho, porque a gente estava estudando na escola o improviso, felizmente e infelizmente, a escola americana e europeia. Mas o meu grande sonho ainda vai se realizar, que é ver a escola da liberdade do frevo na improvisação".

Maestro Forró maestro da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério | Foto: Paullo Almeida / FolhaPE

Maestro Forró: pesquisa, interação e espontaneidade
Francisco Amâncio da Silva, mais conhecido como Maestro Forró, criador da escola comunitária de música da Bomba do Hemetério, diretor musical e maestro da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério é outro personagem a explorar as possibilidades criativas e a liberdade dentro do frevo. Seu primeiro contato com a cultura popular foi dentro de casa, por influência da de sua mãe, Maria da Penha da Silva, professora primária, que já lhe cantava frevo como música de ninar; e de seu pai, Zé Amâncio do Coco, mestre da cultura popular que veio da Zona da Mata para morar na Bomba do Hemetério, na Zona Norte do Recife. 

"Eu tive a sorte de ter nascido nessa comunidade e tive a sorte maior ainda de ter nascido em uma casa onde meu pai, Zé Amâncio do Coco, cantador de coco de roda, violeiro e cirandeiro, veio da Zona da Mata para morar na Bomba do hemetério na década de 1940. Eu nasci na década de 70 nessa comunidade riquíssima e tive os primeiros contatos com o frevo. Dentro da minha casa, meu pai me ensinando a tocar pandeiro e eu escutando aqueles discos de Claudionor Germano dos 25 anos de Frevo de Capiba", lembra Forró.

"Meu pai colocava esse disco em vinil de vários artistas e variados estilos, mas quando virava o ano ele lascava o disco de frevos de Capiba. Isso é uma memória muito forte. Minha mãe, uma professora primária, Maria da Penha da Silva, cantava para mim. 'Tá faltando alguém, tá faltando sim. Tá faltando uma pessoa pra gostar de mim' Eu achava que era uma música de ninar de domínio público. Mais tarde eu soube que é do maestro José Menezes. E, por coincidência, assumi a cadeira desse maestro célebre na Academia Pernambucana de Música, anos depois", recorda.

"O Carnaval pernambucano, o nosso frevo, é uma mistura, um conjunto de diversidades que forma uma grande e forte unidade", define o maestro Forró. Em meados da década de 1990, ele iniciou um trabalho de "pesquisa, manutenção, releitura e interação" - como ele mesmo define - com moradores da Bomba do Hemetério que seria o ponto de partida para a criação da sua orquestra, que virou referência cultural e social na comunidade. 

"Eu saí com as antenas abertas partindo da Bomba do Hemetério, com a cultura bombense, porém aberto a me comunicar com qualquer coisa do planeta que a gente ache boa. E fomos misturando com coisas do leste europeu e tudo que a gente achasse bom. Aí a gente fez uma liquidificação de sons e de estilos e tiramos novos sons do ponto de vista técnico e musical", explicou.

"A gente também adicionou à linguagem acadêmica - a gente sempre se preocupou muito em tocar bem, afinado e com articulação e pesquisar como começou, como está hoje, e discutir o futuro das nossas manifestações musicais do ponto de vista acadêmico, mercadológico e sobre a  comunicação", conta Forró. 

Para ajudar a comunicar melhor as novidades de mistura de diversidades que pretendia trazer ao público, ele criou seu alter ego. "A gente adicionou à linguagem acadêmica a alegria e a espontaneidade. E criamos o personagem maestro Forró, que entre os vários objetivos o mais importante é a comunicação, desmistificação e a desburocratização dessa figura sisuda de grande parte dos maestros do planeta", explica.

"Eu sou fã da linguagem acadêmica. Estudo todos os dias a articulação, a dinâmica, contraponto, harmonia. Porém, o maestro Forró adiciona à linguagem acadêmica, a espontaneidade, a alegria e a comunicação. O maestro forró é uma mistura de saudade, jornalista, cachorro, advogado, tudo junto e misturado", brinca Forró.

O multi-instrumentista e arranjador Henrique Albino

A novíssima geração do frevo
Dando continuidade ao caminho desbravado pela geração de Spok e Forró, há mais de 20 anos, novos jovens artistas trazem suas novidades para o frevo. Um desses nomes é o do multi-instrumentista e arranjador Henrique Albino. Nascido no Recife, mas criado desde criança no Alto da Nação, periferia de Olinda, teve seu primeiro contato com o frevo observando as orquestras que passavam perto de sua casa. 

Aos 13 anos, começou a tocar nos grupos de frevo como o Bloco Esperança, Seresteiros de Salgadinho, Batutas de São José e Bloco das Ilusões, do Galo da Madrugada. Em 2009, inicio-se no sax, tocando em u instrumento emprestado de uma amigo. Foi convidado, então, ao Grêmio Henrique Dias, onde passou a tocar com Maestro Oséas, Mamão do Pandeiro e os vários mestres do frevo de Olinda e Recife.

Com uma vida ligada diretamente às agremiações e orquestras de frevo, Albino logo percebeu que sua personalidade inquieta tinha muita semelhança com o gênero responsável por grande parte da sua formação musical.

"Eu tenho uma vibração parecida com o frevo, que é de quebrar paradigmas, quebrar a teoria da música, ritmos  quebrados e muitos desafios. E eu me encantei com isso. Depois eu comecei a compor meus próprios frevos e escrever arranjos para as orquestras", conta.

Desse encontro com o frevo, idealizou o conceito de "música tronxa", que foi muito inspirada nessa vivência no Carnaval. "É uma música de desafio. Música que desafia quem compõe, quem interpreta e quem ouve e exalta as diferenças e a pluralidade, e o frevo também é isso", compara.

Orquestra Malassombro busca atualizar o frevo de bloco com temas atuais 

Orquestra Malassombro e o Carnaval atual
Uma das mais recentes e aclamadas orquestras de frevo de bloco do Recife, a Malassombro reúne jovens artistas em torno da construção de um Carnaval do presente e não apenas a evocação de saudades do século passado. O arranjador e bandolinista Rafael Marques, idealizador e maestro da orquestra, realizou seu antigo sonho de juntar músicos de sua geração para falar dos dias atuais e construir uma nova tradição ligada ao que é contemporâneo.

Aos 16 anos de idade, conheceu o Canaval de Olinda levado por um tio e se encantou. "Eu vi aquelas troças passando, uma coisa maravilhosa". Profissionalmente foi iniciado em agremiações de frevo de bloco, onde tomou gosto pelo gênero. "Até o momento eu era só um fazedor de frevo. Eu era um cara da comunidade que tocava. Sempre tive essa vontade de ter uma orquestra que cantasse o tempo que agente vive. Porque o frevo de bloco canta sobre um tempo que passou. É um lugar muito da saudade. E é uma saudade de uma galera já muito das antigas. E a gente evoca nomes e agremiações da década de 1920, fala de lugares dessa época. E eu sempre tive vontade de cantar sobre o Carnaval que eu vivi e brinquei", detalha Rafael.

"Acho que a maior novidade da Malassombro é a poesia. Porque a instrumentação é comum ao frevo de bloco. Claro que a gente tem uma característica própria, mas que não chega a ser grande novidade. A gente tem arranjos mais rebuscados, coisas que não eram tão usadas como as questões harmônicas e rítmicas, mas isso não é um dos grandes fatores de novidade. Acho que o peso da gente mesmo é a poesia. É como é contado o nosso frevo", aponta.

"O nosso maior trunfo é não ter vícios de linguagem. A gente tem muita liberdade criativa nas letras", afirma. Ele lembra que o saudoso Guitinho de Xambá ofereceu para a Malassombro uma canção com uma letra inovadora para o gênero. "São quatro dias, o povo malassombrado, mas eu sou juremado, sou mourão que não bambeia. A minha mãe me deu o seu rezado, filho, tome cuidado até a quarta-feira. Para não se encangar com uma caveira de paletó, você bem sabe que no meio da folia, até evangélico faz seu catimbó. E malassombado dança frevo até cotó. E malassombrado varre Vassourinhas até o pó", canta. "Ele traz a linguagem do terreiro, que não existia no frevo de bloco. Essa música virou um dos hinos da Malassombro", comenta.

A cantora Isadora melo, esposa de Rafael, uma das integrantes da Orquestra, explica sobre as diferenças da sua orquestra com a escola tradicional dos blocos líricos.

"Nossa crítica social, os personagens que a gente leva para a rua hoje, o jeito que a gente faz as fantasias hoje e o que a gente leva para a rua hoje em dia. Quando a gente fala que Carnaval é política, então Carnaval também é quase como um teatro de revista, quando a gente sai fantasiado com um personagem da atualidade ou comenta algum caso que passou na televisão. Então, a gente está trazendo a atualidade e algo de contemporâneo que foge a essa tradição. E eu acho mais difícil de isso ser levado também para o frevo de bloco. E na Malassombro a gente traz todos esses comentários e camadas contemporâneas e sociais para o Carnaval, para a poesia e para a forma", pontua Isadora.

Sobre a preservação e valorização do gênero em pernambuco, Rafael Marques destaca um equipamento que tem acolhido e incentivado os fazedores de frevo. "Houve uma melhora significativa desde a abertura do Paço do Frevo. É um equipamento importantíssimo para essa manutenção do frevo", destaca. A Orquestra Malassombro - que inaugurou sua sede recentemente - a Casa Malassombro, no Bairro do recife - está representada na mais nova linha do tempo da exposição permanente sobre o frevo abrigada pelo Museu.