Opinião

Ninguém deve perder por W.O.

A julgar pelos comentários sobre meu último artigo na Folha de S.Paulo - MILITARES PROFISSIONAIS COEXISTEM COM O CONTROLE CIVIL, em 09.02.23 - no qual trato as relações entre civis e militares, do ponto de vista pessoal de um general da reserva, estou perdendo o jogo.

Mas se não aceitamos, nós militares, entrar em campo e iluminar nossas propostas, já estamos derrotados por W.O. E faço uma ressalva, não tenho procuração para falar em nome de ninguém.

Nos últimos anos (e vai além da quadra governada pelo ex-presidente) os militares foram pouco a pouco tragados para o cenário político. A subjetiva falta de quadros para preencher os cargos da administração pública, a imensa confiança junto à população, a imagem de bons gestores e, em algum grau, a fraqueza do Poder Executivo, favoreceram essa modificação de postura de grande mudo das Forças Armadas empregada em governos pós-regime militar. 

Todavia, não vejo aí as razões objetivas para a atual discussão figadal sobre as relações entre civis e militares. Mesmo o anormal preenchimento de cargos civis por militares no último governo é reflexo, e não causa.

O general Eisenhower, quando presidente dos Estados Unidos da América, buscou nas Forças Armadas milhares de ex-militares para tocar o país após a Segunda Guerra Mundial e não houve dúvidas com relação ao tamanho da cadeira de cada um.

Onde encontrar o olho d’água dessa arenga?

Diria que nasce no encontro da formação da nacionalidade de nosso povo refletida no tipo de colonização ibérica e no processo de afirmação como nação quando da independência.

Comparemos as duas situações.

Voltados para o interior, olhando para além da cordilheira dos Apalaches, os primeiros americanos construíram suas estruturas de poder de forma endógena. Do velho continente herdaram ideais, a prática eles adaptaram.

Nada a esperar da antiga metrópole que os via como competidores. Os pais fundadores também sabiam que após as lutas da independência precisavam enquadrar o exército continental. E o enquadraram.

Já os brasileiros conquistaram sua independência fruto de uma conjuntura exógena, a partir das lutas napoleônicas, expulsão da família real portuguesa e posterior retorno da corte após a derrota do pequeno corso.

O Exército Imperial carecia de vínculos afetivos com a terra, em seus quadros formavam, junto com nacionais, estrangeiros, mercenários e até mesmo portugueses desiludidos com o andar da carruagem às margens do rio Tejo no outro lado do Atlântico.

Anos mais tarde, o chamamento para debelar constantes crises internas ao longo do período da regência e até no segundo reinado fortaleceu nas lideranças militares o sentimento de soldado salvador. 

A República veio a reboque de um desgaste e desgosto com o poder monárquico, que aparentemente desconsiderou o poder militar após a vitória na Guerra da Tríplice Aliança.

Desde então e ao longo do século 20, o militar envolveu-se como ator principal ou coadjuvante em vários fatos históricos da política de nosso país, culminando com o regime civil-militar entre as décadas de 1960 e 1980. Consolidava-se a alma de soldado salvador gestada um século atrás.

Já o Exército americano seguiu outro caminho. A partir da sua projeção política-militar com as vitórias nas duas grandes guerras do século passado e fortalecimento como liderança inconteste do mundo livre, suas Forças Armadas se projetaram para além das fronteiras em quatro cantos do mundo.

Coincidentemente, o fim da Guerra Fria e o advento das guerras do povo (conceito do general inglês sir Rupert Smith, descrito no livro A Utilidade da Força) parece marcar o início do partidarismo de oficiais de alta patente em defesa de campanhas presidenciais nos Estados Unidos. 

Cabe uma provocação: a ausência da possibilidade de uma guerra de alta intensidade com o uso de arma nuclear reorientou o soldado profissional americano para a política? 

Cabe outra provocação: os militares brasileiros que se esmeraram no adestramento técnico e operacional pós-regime militar, como vacina aos envolvimentos na política partidária, ainda se enxergam como soldado salvador? 

Soldado salvador e soldado profissional em algum momento podem se encontrar. Não são excludentes. É o que nos mostra a história recente (aqui no Brasil e lá na América). Melhor que escolham sempre o caminho da servidão constitucional. E é por isso que temos o dever de entrar em campo.

Paz e bem!



*General de Divisão da Reserva


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