Preconceito

Gordofobia: preconceito afeta saúde mental; mas pessoas gordas buscam empoderamento

Recife possui legislações específicas voltadas para o combate à gordofobia

Jacy Menezes é esteticista e empreendedora - Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco

“Na escola, eu sempre era a gordinha da dança, a gordinha da natação. Isso já me afetou muito na infância.” “Uma clínica de estética tinha uma vaga na minha área, mas disse que não me contrataria porque eles estavam buscando uma pessoa magra.” “Eu sou professor de dança, fui dar aula de frevo em uma academia e quando os alunos me viram saíram da sala porque achavam que eu não saberia dançar e não conseguiria dar aulas devido ao meu peso.”

Essas falas pertencem, respectivamente, à blogueira e modelo plus size Maiara Fernandes, 30 anos, à esteticista e empreendedora Jacy Menezes, 35, e ao bailarino popular e produtor cultural, Henrique Marinho, 33.

Os relatos semelhantes refletem a rotina ainda comum a pessoas que estão fora do dito padrão corporal: uma construção da sociedade, muitas vezes pautada em preconceito e discriminação, e que valoriza excessivamente a magreza ao mesmo tempo em que condena corpos gordos.

Uma condenação que é repassada diariamente às pessoas com corpos reais, mas fora do padrão estético dominante, e que por meio de comentários e atitudes incorre em uma prática discriminatória que essa, sim, deveria ser condenada: a gordofobia.

Maizinha, blogueira - Foto Melissa Ferandes/Folha de Pernambuco

Com mais de 50 mil seguidores em uma rede social, Maiara, que é na verdade muito mais conhecido como Maizinha, já viu os haters (como são chamados os “odiadores” na internet) chegarem ao seu perfil de forma invasiva, com mensagens que demonstram o preconceito sofrido por pessoas acima do peso padrão.

“As pessoas acham que podem falar o que quiser, que podem criticar, que podem criticar sua saúde, que podem criticar seu estilo de vida. Elas desacreditam que você pode fazer uma dança, uma luta, para o seu bem-estar, acham que tem que ser realmente ligado à pressão estética. E eu acho que não convém, eu acho que a saúde, o bem-estar, está muito mais acima do que a pressão estética, do que a ditadura da magreza”, disse. 

O preconceito também é constante na vida de Henrique. “Eu trabalho com dança. E a partir do momento que todos os dias eu tenho que provar que sei dançar, é uma parte de gordofobia, é bem cansativo. Como minhas taxas sempre foram normais, eu entendi que não preciso emagrecer, que não estou doente. Então, eu preciso me aceitar do jeito que eu sou e ocupar os espaços com esse corpo que eu tenho”, comentou.

“Existe um preconceito enraizado sobre a questão da pessoa gorda. Mas a partir do momento em que eu estou me representando como uma pessoa gorda, eu não estou fazendo apologia à obesidade. Se você está doente, se você não está se sentindo bem, se você não se aceita, realmente você tem que procurar um meio como você se sinta bem”, acrescentou. Este sábado (4), aliás, marca o Dia Mundial da Obesidade.

Henrique Marinho, bailarino - Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco

Jacy Menezes também já passou por situações difíceis de lidar em razão da gordofobia praticada pelas pessoas. “Eu fui alugar um vestido de festa e, quando cheguei à loja, a vendedora disse que não tinha roupa para mim porque eu era gorda”, lembrou.

“Eu também vejo muita gente nas redes sociais recebendo ataques gordofóbicos. A gente tem que trabalhar a sociedade para que entendam que todo mundo é normal, todo mundo pode ser feliz como quiser. A sociedade pode ajudar mostrando quem são as mulheres reais de verdade, mulheres reais existem, mulheres gordas são o que elas quiserem ser, são médicas, enfermeiras, esteticistas. Não é você fazer apologia à gordura, é incentivar as pessoas a serem do jeito que são”, analisou.

Jacy Menezes, esteticista e costureira - Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco

Para além de alvos de uma sociedade que pode ser cruel, os três têm em comum a alegria que o preconceito não foi capaz de eliminar, o empoderamento e o desejo de influenciar mais pessoas a se aceitarem e serem felizes com seus corpos reais.

“Muita gente desacredita que eu danço até o chão, que eu não sinto dores, que eu faço musculação. É o desacreditar que dói, a falta de respeito, você se meter na vida dos outros, isso é ser invasivo demais. Realmente, busco empoderar e quebrar o tabu mesmo, mostrar que você pode ser o que você quiser. Nas redes sociais, tento passar minha experiência, estar lá como rede de apoio mesmo”, comentou Maizinha.      

“Eu já fui rei do Carnaval do Recife, Mister Plus Size e, a partir do momento que estou nesses espaços, eu consigo inspirar outras pessoas. Acredito que as pessoas conseguem ver que são capazes quando elas veem uma representatividade ali”, destacou Henrique.

“Mas os problemas estruturais são muitos, como catraca de ônibus, lugares de assentos, as cadeiras são muito pequenas, então é muito complicado. A gente precisa da inclusão de todos os corpos”, completou. 

Costureira e com o objetivo de vestir pessoas com biótipos reais, Jacy lançou, em 2020, a marca autoral Gorda Basika. A proposta também é de produzir peças comprometidas com o meio-ambiente.

“Eu sempre fui apaixonada por moda e me apaixonei pela costura. Então, no meio da pandemia eu decidi criar uma marca de roupa, de moda autoral, porque eu vejo, dentre muitas marcas de mercado que existem, uma defasagem muito grande para o público plus size. Porque é uma roupa que eles dizem que é plus mas é um tamanho único, e os corpos não são iguais, cada corpo é diferente, nós temos vários tipos de corpos. Então, eu decidi abrir uma marca e um dos objetivos é a conscientização sobre o meio-ambiente, porque eu faço roupas a partir de retalhos. Eu quero que seja uma marca de moda exclusiva e que vista todos os corpos, independente de a pessoa ser gorda ou magra”, contou.

Apesar de hoje estarem bem consigo mesmos e buscarem ajudar mais pessoas a se sentirem assim, Maizinha, Jacy e Henrique sabem bem os danos que a gordofobia pode causar à saúde mental de quem sofrem esse tipo de discriminação.

Gislayne Rosário, psicóloga - Foto: Arquivo Pessoal

Como explica a psicóloga Gislayne Rosario, tais atitudes atingem a autoestima de diversas maneiras. “A gordofobia afeta muito a nossa autoestima, a nossa autoestima de forma geral, não só de se olhar no espelho e não se sentir bonita, mas de não se sentir capaz de desempenhar nenhuma tarefa”, destacou. 

“São comentários e atitudes que não só ferem e machucam como causam danos significativos para a saúde mental das pessoas.  Porque você pode ser uma pessoa gorda e não estar satisfeita em ser uma pessoa gorda e buscar emagrecer por questão de saúde ou por questão de estética mesmo. Cada um faz suas escolhas. Mas, esse tipo de comentário, a gordofobia, faz com que a gente entre em outro lugar, que é o lugar de outro tipo de adoecimento, que é uma busca desenfreada por um padrão estético que é vendido para a gente e que nem sempre é alcançado”, frisou. 

Em 2021, o Recife se tornou a primeira cidade do Brasil a ter legislações voltadas ao combate à gordofobia. Uma delas prevê que as escolas e universidades, públicas ou privadas, possuam carteiras escolares adequadas aos biotipos corporais de pessoas gordas, além de também prever a formação de professores para debaterem o tema.

Cida Pedrosa, vereadora do Recife - Foto: Divulgação

“A gente tem que combater a gordofobia das mais diversas formas, isso em todas as áreas”, comentou a vereadora Cida Pedrosa, autora dos dois projetos que viraram lei. Um terceiro projeto de sua autoria também está em tramitação na Câmara Municipal do Recife.

“É uma legislação para a saúde, que está empacada na Comissão de Legislação e Justiça, que prevê a compra de macas, de cadeiras de rodas, de vestimentas, de várias adaptações para a área de saúde. Para se ter uma ideia, Pernambuco só tem duas máquinas de fazer tomografias que cabem pessoas gordas”, afirmou.

A juíza Ana Cláudia Brandão, titular da 29ª Vara Cível do Recife, explica que casos de gordofobia podem gerar indenização por danos morais.

“Às vezes as pessoas têm condutas que configuram essa aversão à gordura e até preconceito e discriminação. Por exemplo, quando alguém numa rede social vai e diz coisas como “gordão” e a pessoa que recebeu se sente ofendida. A gente hoje tem mecanismos de reprimir e de dar uma reprimenda nem que seja pedagógica, educativa. Porque a ideia da indenização é essa. Tem a parte, claro, da repressão, mas tem a parte pedagógica, que é para que sirva de lição para que a sociedade não faça mais isso. Porque ela vai saber que vai poder ser condenada a pagar determinada quantia”, disse. 

Ana Cláudia Brandão, juíza de Direito - Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco

Caso as discriminações ocorram em ambientes corporativos, as ações podem ser destinadas à Justiça do Trabalho. E em situações envolvendo violência psicológica contra as mulheres, é possível acionar a Lei Maria da Penha. A magistrada destacou, ainda, que as pessoas que forem vítimas de gordofobia podem procurar canais de denúncia como Disque 100 (Direitos Humanos) e Defensorias Públicas para ajuizar ações. “Você poder valer seus direitos”, orientou.