Promotor de 'Argentina, 1985' compara o pós-ditadura de seu país com o do Brasil
Longa disputa Oscar de melhor filme internacional neste domingo
“O filme é sobre o risco de (perder) a democracia, (...) não apenas para a Argentina de 1985. É o Brasil de 2023”, diz Luis Moreno Ocampo sobre “Argentina, 1985”, que disputa o Oscar de melhor filme internacional no domingo. Ele foi um dos promotores do julgamento dos comandantes militares da ditadura argentina, momento histórico retratado no longa.
Dirigida por Santiago Mitre, a narrativa mostra como o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín) e seu adjunto, Moreno Ocampo (Peter Lanzani), conduziram a acusação contra os nove dirigentes militares no poder entre 1976 e 1983, em um clima de grande tensão após uma ditadura brutal.
Em entrevista à AFP na Califórnia, onde mora atualmente, Moreno Ocampo destacou a recepção positiva do filme em países como Brasil e Espanha, que atravessaram ditaduras militares que não enfrentaram os tribunais.
“Na transição da ditadura para a democracia, não investigaram o passado”, afirma o advogado. O julgamento da Junta na Argentina "transformou a perspectiva do país (...) Esse processo faltou no Brasil, onde temiam que os militares pudessem se envolver em um golpe num futuro próximo".
Segundo Moreno Ocampo, “os militares não são o problema, porque eles cumprem ordens. São as elites, se suas elites apoiam um golpe de Estado, você tem um problema”.
“Isso é uma coisa que não entendem no Brasil, mas até nos Estados Unidos não entendem”, acrescenta, referindo-se ao ataque de janeiro de 2021 ao Capitólio, nos últimos dias da presidência de Donald Trump, ao qual o ataque de janeiro passado às sedes dos Três Poderes em Brasília foi muito comparado.
“Batalha pela memória”
Hoje com 70 anos, Moreno Ocampo tinha apenas 32 e pouca experiência quando trabalhou no caso, mas para ele era claro que precisava convencer não só os juízes, mas também a opinião pública da Argentina. Algo que “Argentina, 1985” também está fazendo, aponta.
“É preciso ganhar o caso no tribunal, mas depois vem uma batalha pela memória”, avalia. “Venci a batalha pelo entendimento em 1985. Mas agora, Santiago Mitre e Ricardo Darín estão vencendo a batalha pela memória. E isso é único", acrescenta o ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional (2003-2012).
Vindo de uma família de tradição militar, Moreno Ocampo conta que sua própria mãe estava contra ele. “Minha mãe frequentava a missa com o ditador Jorge Videla!”
Mas como revela uma das cenas mais dolorosas do filme, o angustiante depoimento de uma mulher obrigada a parir algemada dentro de uma viatura a fez mudar de opinião.
“No dia seguinte, minha mãe me ligou (...). Disse: 'continuo gostando do general Videla, mas você tem razão, ele tem que ser preso'”, lembra Moreno Ocampo.
Isso encheu de otimismo o então promotor adjunto que, com Strassera e uma equipe de jovens inexperientes, construiu um processo que levou às condenações de seis dos militares, incluindo Videla, um feito para a América Latina, marcada naqueles anos por violentas ditaduras.
"Argentina, 1985" mostra como o regime militar estabeleceu campos de detenção, tortura e extermínio, jogou pessoas vivas de aviões ao mar e prendeu outras indefinidamente. Cerca de 30 mil argentinos desapareceram, segundo organizações de direitos humanos, e centenas de bebês nascidos em cativeiro foram entregues a outras famílias.
"No meu país, meu exército tratou os cidadãos argentinos como inimigos", diz Moreno Ocampo. "Não se pode tratar cidadãos como inimigos".
“O poder da juventude”
A Argentina já ganhou dois Oscar de melhor filme internacional, ambos por obras que abordaram os anos do terror militar: “A História Oficial", em 1986, e "O Segredo dos Seus Olhos", em 2010.
Fã de futebol, Moreno Ocampo espera que seu país conquiste agora sua terceira estatueta em Hollywood, assim como fez ao se consagrar tricampeão na Copa do Mundo no ano passado.
Ele também confia em que o filme de Mitre, que dedica boa parte do tempo a mostrar o trabalho de jovens que ajudaram os promotores, vai fazer a história alcançar as novas gerações.
"Meu filho de 23 anos não tinha ideia do que havia acontecido. E agora está aprendendo", conta Moreno Ocampo, pai de quatro filhos.
"Este filme é (...) também sobre o poder da juventude: como os jovens são aqueles que mudam o mundo e como é necessário continuar lutando pela justiça. A justiça é um trabalho sem fim", assegura.