Futebol e Civilidade: Até Quando Tolerar a Violência dos Maus Torcedores?
Por esses dias, meu duplo, exagerado e contraditório alter ego, exercido através dos conflitos interiores de torcedor entre meus entes, Arquilbaldo e Telegildo, ficarão calados. Sob protestos e numa espécie de ofício grevista somente para emudecidos circunstancias, exercerão o silêncio do constrangimento. Cabem explicações.
De fato, para os que estão cansados de tantos discursos e raras decisões, não há como reagir se não for por calar-se. Gesto que bem compõe meu embate interior entre personagens, mas que não deixa de exprimir o senso da revolta, o ápice do desencanto.
No clássico local do sábado 11/03, fui à Ilha já consciente de que um simples jogo, visto como ato de paixão comedida com respeito às diferenças, não seria ambiente para levar comigo e minha esposa, as netas que aqui moram. Uma certeza absurda, que apaga o registro saudoso de um passado, no qual tudo estava no pacote de um entretenimento sadio. Fui do tempo que crianças rivais (e até jovens e adultos) poderiam mergulhar na mesma onda torcedora. Lado a lado, sem quaisquer receios que não fossem atitudes momentâneas e tolerantes. Tudo se dava sem medo de ser feliz.
Atualmente, as cenas de violência estão por toda parte e se repetem nutridas por um hedonismo feito de agressões. Nas atitudes, nas palavras dirigidas e, cada vez mais, numa essência odiosa que pode explodir feito bomba relógio - em algum momento.
Tudo isso me assusta e faz repensar o sentido de expor as "minhas crianças" a esse ambiente contagiado por maldades. Por mais que a paixão insista no contrário, num apelo ao irracional que há dentro de nós. O danado disso é que, em nome de um basta, promessas se renovam, mas torturas e assassinatos se revezam a olhos vistos. Como os fatos ocorridos recentemente no Rio e em Curitiba. Aqueles olhos mais racionais se arregalam nos primeiros instantes do fato, mas depois se fecham numa cumplicidade covarde e abjeta.
Sinto que os agentes socisis envolvidos com o futebol, seja direta ou indiretamente, têm culpa pelo estágio alcançado. Por mais incrível que pareça, de zona de conforto, no agir com a mais absurda dissimulação. Ou mesmo, no referendar de um escapismo típico de uma sociedade que não se encoraja para rever questões estruturais. O ambiente da "sociedade dos desportistas" é assim uma mera consequência do conjunto de uma obra que, como agentes sociais, não estão nem aí para ideias e preconceitos que mexam nas estruturas. Tudo junto e misturado. E assim a "banda toca".
Soluções estão aí, por mais que os resultados práticos possam não parecer tão óbvios, no curto prazo. Atrevo-me num roteiro de dois passos, que possa mesmo ir de encontro aos males que a violência proporciona ao futebol: 1) educar os agentes; e, 2) criminalizar os responsáveis.
A educação (evidente que, vista pela falta dela como compromisso público) tem sido a melhor resposta para enfrentamento dos males estruturais do Brasil. E aqui referencio a educação pela macrovisão do dever técnico natural. E a reverencio por vê-la também pela microvisão de quem pode humanizar relações.
Enquanto os dirigentes, os distintos profissionais técnicos, os atletas, os cronistas esportivos e os torcedores agirem como catalisadores de uma violência, muitas vezes cínica e dissimulada, nenhum outro vetor de macrovisão poderá agir como ente transformador. Por exemplo: isso corresponde ao gesto provocador de certos dirigentes, que adoram se exibir para suas torcidas. Também ao papel do cronista benevolente que, pelo objeto da audiência, abre espaços para que a incitação à violência aja na sua sutileza. Pior ainda: em tempos de redes sociais agitadas, quando todos esses agentes se servem como propagadores do ódio, manifestações engraçadas e caricatas podem não cair bem, porque difundem divergências. O mundo mudou e a fragilidade psico-emocional de muita gente pode ser capaz de tudo. Até jurar de morte.
Se esse esforço é mesmo um compromisso por renovar através da educação, a punição dos que propagam e convivem com o mal pode ser o passo seguinte. Sem que haja a criminalização, a identificação dos responsáveis, penso que tudo irá por água abaixo. É preciso, pois, determinação e coragem para resgatar uma forma de paz no futebol, que seja compatível com a realidade.
Os riscos civilizatórios também existem para um futebol que, de longe, perdeu todo aquele romantismo etéreo. Se ainda lhe falta uma profissionalização sustentável, operar no escapismo social de negar o quanto a violência de torcedores insanos é prejudicial, parece-me hoje um tiro no pé.
Atenção desportistas racionalizados e autoridades públicas sintonizadas com o enfrentamento do problema (os três poderes, ministério público e demais interessados): chegou a hora de agir para virar a página da repetição insistente das cenas de violência no futebol. Ou tomaremos essas atitudes ou assinaremos em baixo para aumentar o grau de risco do novo marco civilizatório, que o despertar de uma nação ainda tanto implora.
Tolerância zero com esses torcedores fakes. Ou melhor, com esses verdadeiros criminosos. Uma nova geração quer exercer o direito de alforar sua paixão pelo futebol. Simples assim.
* Economista e colunista da Folha de PE