ESPIONAGEM

Caso Abin: apurações de governo, Congresso e TCU miram na identificação de alvos de programa secreto

Órgão operou, sem qualquer previsão legal, um sistema capaz de vigiar os passos de até 10 mil pessoas ao ano por meio da localização de seus aparelhos celulares

Congresso Nacional - Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

O governo federal e integrantes do Congresso e do Tribunal de Contas da União (TCU) lançaram nesta quarta-feira (15) uma ofensiva para apurar a utilização de um programa de espionagem pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Como revelou o Globo, o órgão operou, sem qualquer previsão legal, um sistema secreto capaz de vigiar os passos de até 10 mil pessoas ao ano por meio da localização de seus aparelhos celulares. As investigações devem mirar na identificação de quem foram os alvos do monitoramento, feito à margem da lei, além dos agentes públicos responsáveis pela atividade. Em nota, a Abin confirmou ter utilizado a ferramenta, mas informou que o contrato foi encerrado.

No governo, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou ontem que o caso será levado à Controladoria-Geral da União (CGU), que tem por função acompanhar ações disciplinares envolvendo servidores públicos. Segundo ele, o plano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva é reformular a agência de inteligência, que deixou de ser subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão tradicionalmente comandado por militares, e passou para o guarda-chuva da Casa Civil.

— Se algo foi feito no passado, no outro governo, que não tem conformidade com a lei, será levado a quem é responsável: à CGU e aos órgãos de Justiça, para que as providências cabíveis e a responsabilização devida sejam feitas —disse Costa, acrescentando que a agência passará por “mudanças de métodos e de práticas”.
 

O ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, foi na mesma linha ao afirmar que os responsáveis pelo monitoramento serão “fortemente punidos”.

— Isso é muito grave. É mais uma questão a ser apurada das profundas irregularidades cometidas, não só por Bolsonaro, como por agentes do governo anterior — disse Padilha.

Ex-diretor na mira
Um dos alvos das apurações deve ser o ex-diretor-geral da Abin Alexandre Ramagem, que comandou a agência no período em que o programa de monitoramento foi utilizado. Em manifestação ontem pelas redes sociais, Ramagem admitiu o uso da ferramenta, mas disse que as ações ocorreram dentro da legalidade. Questionado sobre em qual lei se baseou para vigiar a localização de pessoas por meio de dados de celulares, não respondeu.

“Para essa ferramenta, instauramos ainda correição específica para afirmar a regular utilização dentro da legalidade pelos seus administradores, cumprindo transparência e austeridade” publicou.

Na postagem, Ramagem ainda diz que o programa havia sido comprado na gestão anterior, de Michel Temer. A contratação é datada de 26 de dezembro, a seis dias do início do governo Bolsonaro, no qual a ferramenta continuou a ser usada ao longo de três anos.

Na época, a utilização do programa, batizado de “FirstMile”, gerou questionamentos de integrantes do órgão, que abriu procedimento interno para apurar os critérios e a regularidade da contratação dessa tecnologia de espionagem. Próximo dos filhos do ex-presidente, Ramagem deixou o cargo em março do ano passado para concorrer a uma vaga de deputado federal, para o qual foi eleito.

O ex-diretor-geral da Abin também deve ser alvo de investidas no Congresso. Vice-presidente da Comissão Mista de Controle de Atividade de Inteligência (CCAI), o senador Renan Calheiros (MDB-AL) afirmou que pedirá esclarecimentos sobre o caso. O colegiado é responsável por fiscalizar a atuação da agência.

— Nossa missão é fiscalizar. A CCAI vai entrar nesse caso com uma enorme lupa, atenta à privacidade dos cidadãos e cidadãs. A se confirmarem as revelações, teremos uma das mais graves violações constitucionais contra a privacidade das pessoas. Os responsáveis deverão ser punidos — disse Calheiros.

A comissão do Congresso, composta por deputados e senadores, ainda está em formação. Por enquanto, só dois parlamentares foram oficializados como integrantes — além de Calheiros, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro.

"Fatos gravíssimos"
Além da CCAI, Ramagem também deve ser chamado a se explicar na Comissão de Segurança Pública e Segurança do Senado. O senador Jorge Kajuru (PSB-GO) apresentou ontem um requerimento para que ele compareça ao colegiado.

“Os fatos noticiados são gravíssimos, pois a gestão de Jair Bolsonaro pode ter usado essa ferramenta para espionar desafetos e adversários políticos. Isso é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. A possibilidade de ter havido monitoramento indiscriminado de pessoas, por si só, causa perplexidade”, argumenta o senador no requerimento.

Líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que tomará medidas para apurar quem foram as pessoas monitoradas pela Abin. O parlamentar defendeu, além da investigação do caso por meio da CCAI, a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

— Em primeiro lugar, checarei quais foram os alvos. Em segundo lugar, considero que cabe uma investigação do Parlamento — afirmou o senador ao GLOBO.

Em outra frente, o subprocurador-geral junto ao TCU, Lucas Furtado, entrou ontem com uma representação para que a Corte de Contas apure possíveis irregularidades cometidas pela Abin na aquisição e uso do programa. Segundo ele, é preciso investigar possível “desvio de finalidade” na utilização de recursos públicos para “supostamente atender interesses privados”.

“Considero que o acesso indevido à localização e movimentação de cidadãos sem qualquer motivação oficial devidamente registrada pode se prestar apenas a atender um eventual interesse pessoal de agentes e autoridades”, justifica Furtado na representação.

Além disso, o Ministério Público Federal abriu uma investigação preliminar para apurar “suposta utilização ilegal de sistema capaz de monitorar a localização de qualquer pessoa por meio do número de telefone celular pela Abin”.