"Não adianta o cargo que ocupo. Minha raça sempre chegará primeiro", diz deputada alvo de racismo
Eleita com 90 mil votos para a Alesp, Thainara Faria conta que os episódios de discriminação são frequentes desde a posse e promete lutar para que este tipo de violência não seja a tônica da legislatura
“Eu sofro racismo na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) desde o primeiro dia em que adentrei esta Casa. Por isso, na sexta-feira (31), quando percebi que havia esquecido o meu bóton de identificação de deputada, pedi para a minha secretária parlamentar ir até o cerimonial solicitar um outro. Eu queria evitar um constrangimento porque sei que, sendo uma mulher preta e circulando de trança neste espaço, sofreria racismo. Primeiro, me negaram o bóton, sob a justificativa de que não haveria acessório para todas as novas parlamentares. Mas depois de muita insistência, acabaram cedendo.
Segui para o plenário e, por três horas, participei de uma solenidade da deputada Leci Brandão (PCdoB). Sentei em frente a uma placa com o escrito ‘deputada estadual Thainara Faria (PT)’. Discursei, me posicionei e fui citada por várias outras pessoas. E no momento em que desci para assinar o livro de presença dos deputados, a dois metros dali, fui barrada. ‘Não. Essa lista é só para os deputados’, me disse a servidora.
A sensação foi de desânimo, tristeza e muita, muita exaustão. Eu mostrei o bóton, que estava visível e pregado na minha roupa, e assinei a lista, sem falar nada. Quando fui dar entrevista à TV Alesp, logo em seguida, acabei ouvindo a servidora reclamando da situação para outra funcionária do cerimonial. Ela disse que era ‘difícil’. Eu respondi que era difícil todos os dias ser confundida com qualquer pessoa, menos com deputada. A servidora argumentou que não tem como saber quem são todos os deputados. Mas existe um ‘carômetro’ com a foto de cada parlamentar, e a função do guardião do livro de presença é justamente saber quem pode ou não assiná-lo.
A partir disso, entendi uma coisa: não adianta o cargo que eu ocupo, o quanto eu recebo por mês ou a minha posição. Nada. A minha raça sempre vai chegar primeiro para as pessoas.
A minha fala na tribuna, algumas horas depois do ocorrido, foi para colocar um ponto final nessa história. Eu não quero mais passar por isso.
Eu me recolhi todos esses dias para tentar recuperar as minhas forças. Porque toda vez que eu ia falar sobre o assunto, acabava chorando. Esse episódio me remeteu a recordações muito difíceis da minha vida.
Uma delas, quando eu ia para a escola, e meu pai, um homem branco, parava no posto de gasolina para abastecer o carro, um Corcel velho. Eu me escondia, pois era frequentemente confundida com uma profissional do sexo. Não imaginavam que eu era filha dele. Num outro dia, voltei do colégio com uma banana na mochila.
Quando comecei na vida pública, sofri muito com o racismo. Fui eleita a primeira vereadora preta na Câmara Municipal de Araraquara (SP). Falaram, na ocasião, ‘agora sim, tendo uma representante negra, a Câmara poderia sair com uma escola de samba’. Nas redes sociais, diziam que eu tinha ‘cabelo de vassoura’ e faziam comentários sobre meu corpo. Nunca sobre o meu trabalho.
Aqui na Alesp, isso só se multiplicou. Não dá para dizer que sexta-feira foi uma exceção. Da posse para cá, os episódios de racismo têm sido muito violentos. A gente pede que haja renovação na política, mas quando a sociedade elege novos quadros, o Parlamento não está pronto para lidar. Querem a todo momento nos tirar desse espaço. Quando estou sem bóton, nem bom dia me falam. Não me cumprimentam. Eu pareço invisível aqui na Assembleia.
Cotidianamente, estou na porta do meu gabinete e alguém me pede para ‘entregar à deputada’ um ofício de emenda parlamentar ou ‘pedir para a deputada’ assinar o documento de criação de uma frente parlamentar. Ninguém nem cogita que eu seja a deputada. E isso acontece toda hora. Toda hora.
No dia da posse, foram dez casos de racismo. Eu contei. A começar quando cheguei de carro dirigindo, com o meu assessor sentado no banco do passageiro. Eu abaixava o vidro para cumprimentar os funcionários e ouvia um ‘oi, deputado’, sempre se referindo a ele. Porque a figura de um homem, branco, de terno, é muito mais reconhecível como deputado do que eu.
Neste mesmo dia, fui impedida de entrar no plenário para tomar posse. Uma policial e uma servidora me pediram para sair do caminho, pois ‘a passagem é para os deputados’. Quando eu disse que era uma das parlamentares eleitas, elas justificaram que eu estava sem bóton. Mas só era possível retirar o tal bóton depois de passar por aquele local.
Vejo que é muito necessário haver um letramento antirracista dentro do Parlamento, para que servidores e funcionários escutem de pessoas pretas o que é ou não racismo. Racismo não é só chamar de macaca.
A minha trança não é uma questão estética. Ela reforça a presença da minha ancestralidade. Eu renunciei à minha infância quando passei a trabalhar aos 7 anos lavando pratos. Renunciei à minha adolescência e, de alguma forma, renunciei à minha juventude. Quando adentro espaços como este daqui é para representar os segmentos que votaram em mim. Foram 91.388 votos. Não preciso negá-los e não preciso escondê-los. Não faço esforço nenhum para não me parecer com quem eu sou.
A última legislatura foi marcada pela violência contra mulher. Esta não será pautada pelo racismo, de jeito nenhum.”
*Em depoimento a Bianca Gomes