Autismo

Como as famílias lidam com o diagnóstico de autismo; especialista orienta como agir

As relações familiares e o recebimento do diagnóstico são tema da terceira reportagem da série especial sobre Transtorno do Espectro Autista

Polly Fittipaldi e Giancarlo Fulco com os filhos gêmeos Pedro e Ângelo - Ed Machado/Folha de Pernambuco

Nos últimos anos, o diagnóstico de pessoas que estão dentro do espectro autista tem aumentado consideravelmente. Um dos motivos para este acréscimo é, justamente, a maior eficácia nas avaliações, aliada a maior capacitação de profissionais responsáveis pelo diagnóstico, bem como mais disseminação de informações sobre o transtorno. Informações essas, aliás, que podem chegar até as famílias, fazendo com que se atentem para a possibilidade de determinadas características de um filho ou sobrinho, por exemplo, serem reflexos do autismo. 

No entanto, ainda que as informações estejam sendo ampliadas, e sabendo que mesmo assim elas chegam em proporções desiguais a depender dos contextos sociais das famílias, o momento da confirmação do diagnóstico continua sendo um dos mais críticos e delicados.

Como explica o neuropsicólogo e psicanalista Luis Gadelha, especilista em autismo, apesar de o Transtorno do Espectro Autista (TEA) não ser considerado uma doença em si, a definição de que aquela criança, que por muitas vezes teve uma vida antecipadamente idealizada pelos pais, está dentro do espectro, chega como uma espécie de “interruptor de sonhos”, quebrando um imaginário pré-concebido.

“Dentro do autismo, quando você recebe o diagnóstico, é como se você vivenciasse o luto, porque naquele momento tudo o que eu vivenciei para aquela criança pode, por um minuto ali, ser destruído por causa de um diagnóstico. E hoje a gente consegue entender que não é bem assim. Receber um diagnóstico de autismo na família faz com que eu comece a ver aquela criança de outra maneira, com outros olhos, ver as possibilidades dela e o que ela tem de melhor também, não é para a gente pensar só nas dificuldades”, disse.

Após o processo inicial de aceitação do diagnóstico, é preciso que as famílias se adaptem às novas realidades e possibilidades. Segundo o neuropsicólogo, o acompanhamento terapêutico do núcleo familiar também é indicado nessa fase.

Luis Gadelha, neuropsicólogo e psicanalista - Foto: Júnior Soares/Folha de Pernambuco

“Tem família que chega aqui desesperada, sem saber o que vai acontecer daqui adiante. Dizem ‘Ah, minha vida acabou, meu filho é doente, não vai poder estudar, trabalhar, se desenvolver, tudo que eu sonhei para ele’. E não é bem assim. Primeiro que a gente precisa analisar qual é o nível de dificuldade dessa criança”, comentou Gadelha.

“Hoje a gente trabalha com três níveis de desenvolvimento, que é o leve, o intermediário e o grave, que é quando a criança precisa de muitas terapias, precisa de um aparato de suporte maior e que geralmente não vem aliado só ao autismo, mas a alguma comorbidade. Então, a gente vai primeiro trabalhar essa família, não é só trabalhar a criança, para poder estruturar essa família novamente porque ela está destruída. E a primeira coisa que a gente precisa tirar dessa ideia familiar é que não é uma doença, é um transtorno, eu tenho predisposição genética, que eu nasci com autismo”, completou.
     
Quando o diagnóstico ocorre na fase adulta, destaca Gadelha, é comum que a família inicialmente receba com desconfiança o resultado. Em muitos casos, revela, os pais chegam a sentir culpa por não ter percebido ou não ter direcionado o filho para um tratamento quando mais jovem.

“Para a pessoa adulta autista é retirado um peso das costas. Eu digo isso porque é o que a maioria fala para mim aqui dentro do setting terapêutico, quando dizem assim: ‘ah, hoje eu sei dar nome ao meu comportamento que pela minha vida toda eu era o estranho da família, porque eu tinha o comportamento repetitivo, eu não socializo direito com as pessoas, eu gosto de me isolar´', pontuou.

"Já os pais geralmente se culpam por não ter observado na infância e na adolescência e hoje saber as dificuldades que aquele adulto tem e que poderia em algum momento da vida dele ter melhorado ao ter sido trabalhado no processo terapêutico. Mas naquela época a gente não tinha essa flexibilidade que a gente tem hoje. Então, muitos precisaram se adaptar ao meio”, acrescentou. 

Em todas as situações, criança ou adulto, é fundamental o apoio familiar. “É fundamental que a pessoa tenha um conjunto de acontecimentos que vai lhe fortalecer. A família é um alicerce. Eu sei que nem em todos os casos vamos ter uma família concreta, um alicerce firme com todos dando apoio, mas é fundamental poder apoiar essa pessoa que está recebendo esse diagnóstico a partir de agora. Não só falo da mãe e do pai, que no caso dos adultos já podem ter perdido, mas da família que se construiu, do marido, a esposa, os filhos, que agora vão lhe ver com outro olhar.”

Para a comunicadora social Polly Fittipaldi, 44, a aceitação de que os filhos, Pedro e  Ângelo, não eram crianças típicas levou 10 anos. Após pressão familiar, ela iniciou, ao lado do companheiro, o fotógrafo Giancarlo Fulco, 44, o processo para a identificação da neurodivergência dos gêmeos, hoje com 15 anos de idade.

“Eu fui uma mãe que neguei o autismo por 10 anos. As pessoas diziam ‘olha, seu filho tem alguma coisa e eu dizia: negativo’. Diziam ‘o seu filho é um pouquinho disperso e eu dizia ‘você que não tem atenção com o meu filho’. Então, todas as desculpinhas que as mães usam até hoje quando não querem aceitar o diagnóstico, quando estão com algum problema em relação ao diagnóstico, eu usava. Do mesmo jeito que hoje eu sou ativista, eu era a pessoa que mais lutava contra qualquer diagnóstico dos meus filhos", lembrou.  

Polly Fittipaldi, fundadora do Mobiliza TEA Pernambuco - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

Com o laudo em mãos e uma “virada de chave” na mente, Polly passou a buscar os acessos que permitiram que seus filhos tivessem as terapias adequadas, proporcionando, assim, o maior desenvolvimento dos meninos.

“Foram 10 anos que eu não fiz nada, então imagina o quanto meus filhos deixaram de desenvolver pela minha ignorância. Mas não a ignorância do não saber, mas a ignorância do não aceitar. Então, quando o diagnóstico chega, é tanta incerteza que a gente entra no luto. Tudo aquilo que a gente idealizou vai acabar, vai morrer, e aí a gente vai conseguir renascer junto com o novo filho, que é aquele filho diagnosticado.”

Foi por meio da série de tratamentos que diferentes avanços foram sendo alcançados. O próprio Pedro contou que anteriormente sentia medo, por exemplo, de entrar em uma sala de cinema escura, o que hoje não ocorre mais. “No começo era difícil. Hoje é tranquilo”, disse. Já  Ângelo, lembrou que gosta das atividades nas escolas e nas terapias: “Gosto de aprender coisas novas”.

A atuação de Polly junto aos direitos de pessoas autistas a transformou em ativista da causa, sendo fundadora e atual coordenadora do Mobiliza TEA Pernambuco, grupo voltado para articulações sociais e políticas em torno do autismo.

“Eu pensei, se está difícil para mim, dentro do meu contexto, então tem gente em situação muito pior. E vamos procurar ver o que está acontecendo por aí. E foi quando eu comecei a ir em busca de outras pessoas, tentar acolhimento com outras mães porque a solidão pós-diagnóstico é cruel, sem contar que dentro dos próprios núcleos familiares você começa a sentir a discriminação.”

Bruna Souto e Tiago Pimentel com o filho Heitor - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

A estudante de enfermagem Bruna Souto, 26, e o estudante de Tecnologia da Informação Tiago Pimentel, 36, precisaram adaptar a casa e a rotina familiar após confirmar o diagnóstico do filho mais novo, Heitor, de 3 anos de idade. “De cara foi um baque, porque a gente não acha que vai acontecer com a gente. É cansativa a rotina mas cada avanço que ela dá, vale a pena”, contou o pai.

Bruna lembra, ainda, que os familiares não concordaram de imediato com o diagnóstico. “Para mim, como eu já tinha certeza, não teve tanto impacto. Mas eu sabia que era algo que eu ia ter que começar do zero, estudar sobre o tema. Algumas pessoas da família não aceitaram muito bem, diziam que ele era uma ‘criança da pandemia’”, contou.

Algum tempo após a identificação de Heitor como estando dentro do espectro, foi a própria Bruna quem também descobriu o TEA. “Eu passei a estudar e vi que em muitas coisas eu também me encaixava, eu não conseguia ter vínculos de amizade, não me encaixava na escola”, recordou.

De acordo com o neuropsicólogo Luis Gadelha, o número de pais que descobrem o autismo após o diagnostico dos filhos tem crescido.

“O diagnóstico é fundamental para a pessoa entender quais são as suas dificuldades, tirar um peso da vida também por entender o porquê de ser assim e trabalhar essas dificuldades. Geralmente, vai ser indicado você fazer uma terapia com um psicólogo e, dependendo da dificuldade, estender essa terapia para um fonoaudiólogo, para uma terapia ocupacional, vai depender da necessidade”, explicou.

Segundo Gadelha, em 2021, ele fez, em seu consultório, a avaliação neuropsicológica de três adultos que tiveram o diagnóstico confirmado. Em 2022, o número subiu para 12. E, apenas nos três primeiros meses de 2023, foram seis confirmações para o TEA.

Paulo Monte, bioquímico e microbiologista - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

O biomédico e microbiologista Paulo Monte, 36, recebeu o laudo aos 34 anos. “Eu sempre tive muito problema com a comunicação. Algumas pessoas acham que eu sou muito direto e que por conta disso eu sou grosso. Isso durante toda a minha vida, o que me atrapalhou bastante”, contou, lembrando que recentemente passou por discriminações no ambiente de trabalho, incluindo o uso de apelidos pejorativos.

Ao saber do diagnóstico, parte da família se surpreendeu. “30 anos atrás, não tínhamos tanto conhecimento como hoje”, avaliou Paulo. Com a confirmação, analisa, o autoconhecimento foi favorecido.

Ele, por exemplo, percebeu que utilizar um abafador para os ouvidos em ambientes com muitos sons e ruídos, como shows e eventos, permite que aproveite o momento sem apresentar exaustão nos dias seguintes. “É um sentimento de libertação”.
 
Ativista e anticapacitista, Monte faz parte do coletivo Autistas Adultos do Recife, que reúne cerca de 40 pessoas, e fundou recentemente, ao lado de três amigas também autistas, a Liga Neural.

“O nosso objetivo é diminuir a invisibilidade, mostrar que os autistas podem ocupar todos os espaços, que nós estamos no meio de todas as pessoas, e criar mecanismos efetivos para que de fato todas essas inclusões aconteçam”, destacou.

Entre  os pleitos levantados está a categorização do autismo nas vagas de emprego para pessoas com deficiência, sem que seja atrelado à deficiência intelectual. “Nem todo autista tem deficiência intelectual”, frisou. “Tem muita gente que fala sobre não sermos normais ou perfeitos. Todas as pessoas são diferentes. Nós somos normais e perfeitos”, concluiu.