Fora do Corinthians: por que "Caso Cuca" ganhou repercussão quase 40 anos depois
Protestos no time paulista refletem mudanças na sociedade, que presenciou episódios envolvendo Robinho e Daniel Alves em menos de dois anos
Os seis dias de Cuca no comando do Corinthians, encerrados na madrugada de quinta-feira (27), são sintomáticos de uma nova perspectiva que vive o futebol brasileiro em relação ao comportamento de seus atores fora dos gramados.
No espaço de cerca de um ano e meio em que torcedores viram o atacante Robinho ser condenado em última instância por violência sexual em grupo na Itália e o lateral-direito Daniel Alves, preso, responder acusação de estupro na Espanha, o técnico de 59 anos não resistiu a uma pressão interna e externa que o obrigou, como ele mesmo afirmou no discurso de despedida, a rever, ao menos judicialmente (com a contratação de advogados), o “caso Berna”.
“Por que só agora?”, questionam torcedores contrários à saída do treinador em redes sociais. “São coisas já passadas há muito tempo, ressurgidas como se tivessem acontecido hoje”, lamentou Cuca em sua despedida. Embora o ocorrido tenha sido em 1987, foi só em março de 2021, 34 anos depois, que o caso voltou à tona. Primeiro nas redes, com campanha de torcedores do Atlético-MG contra seu retorno ao clube. Depois, no noticiário: em entrevista à jornalista Marília Ruiz, ele falou pela primeira vez sobre o caso. Começava ali um retrabalho jornalístico, após décadas em que o caso ficou adormecido e registrado conforme o cenário social e do noticiário esportivo do fim dos anos 1980. A informação seguiria a carreira do treinador de perto a partir dali, tudo em meio a uma sociedade profundamente transformada e midiatizada pela velocidade das redes.
— A internet e as redes sociais facilitam a organização das insatisfações e das pressões, para o bem e para o mal. Neste caso, ajudam a fomentar uma discussão necessária e importante sobre questões como a violência sexual contra crianças e adolescentes, a qualidade da cobertura jornalística, as mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas e como o futebol reproduz comportamentos e práticas violentas e misóginas — explica Karla Gobo, professora de Jornalismo da ESPM e doutora e Sociologia pela Unicamp.
Se em 2021 o protesto contra a contratação de Cuca não teve tanta visibilidade, agora a torcida do Corinthians abraçou com mais força a causa. O anúncio nas redes sociais recebeu milhares de respostas de torcedores insatisfeitos com a notícia, principalmente porque uma das bandeiras do clube nos últimos anos foi a campanha “Respeita as Minas”. Com a incoerência entre o discurso e a contratação, movimentos feministas de torcedoras protestaram no CT no dia da apresentação. Faixas como “Time do povo?” e “Fora Cuca” foram estendidas na entrada, e na coletiva, Cuca foi perguntado se as manifestações atrapalhariam seu trabalho.
— Espero que não. Hoje, pode ter protesto e eu, sinceramente, vou passar por cima de tudo — respondeu.
Protestos nas redes, abraço coletivo e transformação na cobertura
Nas redes sociais, as jogadoras do time feminino e o técnico Arthur Elias publicaram uma nota no minuto 87 da partida contra o Goiás, na estreia de Cuca no comando do time, fazendo menção ao ano em que o crime foi cometido. “Respeita as Minas não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado”. Alguns torcedores, no entanto, se voltaram contra as jogadoras, e o perfil da equipe recebeu comentários como “se estão insatisfeitas, procurem outro clube”. O próprio Arthur chegou a afirmar, posteriormente, que a nota não seria direcionada a Cuca.
Na noite de quarta, quando o Corinthians se classificou para as oitavas da Copa do Brasil, uma imagem marcou a vitória do clube. Na comemoração, os jogadores foram até a beira do gramado para abraçar, em conjunto, o treinador, o que reforçou a imagem de que o elenco comprou a ideia da inocência de Cuca, acreditando apenas em seu discurso e não na condenação. Leda Maria da Costa, pesquisadora do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes, da Uerj, classificou o gesto como “lamentável”:
— De forma geral, os jogadores no Brasil não se posicionam em relação a diversos fatos graves que acontecem no país. Esse silenciamento foi quebrado para demonstrar solidariedade a uma pessoa condenada por estupro.
Por outro lado, ela lembra o caso de Robinho, que chegou a ser anunciado pelo Santos em 2020, mas teve seu contrato suspenso após protestos.
— O universo do futebol está passando por uma reconfiguração. Há alguns anos, era um ambiente em que se aceitavam manifestações homofóbicas, racistas e machistas. Hoje, temos uma sensibilidade mais apurada, mais atenta a causas sociais. A busca por um futebol inclusivo e que não legitima violências é uma luta de todos, não só das mulheres. É fundamental que o futebol acompanhe a sociedade.
A própria cobertura da imprensa apresenta suas transformações. Em alguns relatos da época, a vítima de 13 anos chega a ser descrita como tendo “14 anos incompletos”. As falas colhidas são, na maioria, de partes ligadas aos jogadores ou ao próprio Grêmio. Tudo isso numa época em que os jornais eram uma das únicas formas de registro permanente. Quase quatro décadas depois, o barulho motivou novas visitas e consultas ao caso, como a do site Uol, que ouviu do advogado da vítima que ela de fato reconheceu Cuca e que vestígios do sêmen do treinador foram usados como prova. Nesse novo cenário, Gobo concorda que a figura do jogador de futebol com estrela inconsequente está em questionamento.
— Não é apenas para jogadores de futebol, estão em questionamento comportamentos abusivos e criminosos em todas as esferas e espaços sociais. Ao questionar essas estrelas do futebol, estamos questionando estruturas desiguais que foram naturalizadas ao longo da nossa história.