Milton Nascimento é eleito Personalidade do Ano de 2022 na 20ª edição do Prêmio Faz Diferença
Ao completar 80 anos, um dos mais importantes artistas brasileiros se retirou dos palcos protagonizando uma turnê que cativou o país e teve seu ápice em show arrebatador no Mineirão
“Sou do mundo, sou Minas Gerais”, resumiu o poeta Fernando Brant na canção “Para Lennon e McCartney”, parceria dele com Milton Nascimento, cantor que pode ser considerado o grande milagre brasileiro da música popular.
Menino negro adotado no Rio, em 1942, por um casal branco, ele cresceu entre as montanhas, trens e igrejas de Minas, com o ouvido ligado nos sons da sua terra (toadas, calangos, música sacra) e em tudo mais que chegava por rádio e discos — da tradição dos sambas e serestas à modernidade do jazz, da bossa e dos Beatles.
Nos bailes da vida, Milton se formou, até que em 1967, no Festival Internacional da Canção, o país ficou sabendo de “Travessia”, canção do compositor iniciante (a primeira com Fernando Brant). Defendida pelo próprio Milton, a música ficou em segundo lugar na disputa — sinal de que vinha algo novo e grande para a já imensa música do Brasil.
“Se Deus cantasse, teria a voz de Milton”, disse Elis Regina, uma das maiores apoiadoras do artista, escolhido o melhor intérprete daquele festival de 1967. Trabalhando juntos, de forma indistinguível, o cantor e o compositor Milton começaram ali uma jornada que levaria o jovem artista de Minas ao topo do mundo: um disco gravado nos Estados Unidos com o piano de Herbie Hancock (“Courage”, de 1969), outro álbum de canções suas feito com o saxofonista Wayne Shorter (“Native dancer”, de 1975), incontáveis shows pelo planeta e cinco prêmios Grammy. Tudo isso com uma música que não perdeu sua brasilidade e, muito menos, a mineiridade.
Em 2022, ano em que completou 80 voltas em torno do sol, Milton Nascimento viu alguns ciclos se completarem. Ele se despediu das turnês com “A última sessão de música”, que percorreu o Brasil e o exterior, até uma noite consagradora no estádio do Mineirão, no dia 13 de novembro, em que cantou para mais de 60 mil pessoas.
— Senti a maior emoção da minha vida. O carinho do público vai me marcar para sempre. Reunir todas aquelas pessoas no palco (parceiros como Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, entre outros) foi um acontecimento muito importante para fechar esse ciclo — reflete Milton, sobre sua despedida dos palcos. — A turnê inteira foi muito especial. Meu filho, Augusto, dirigiu o projeto e conseguiu que todas as pessoas envolvidas fossem grandes amigos.
Completavam-se, no Mineirão, também, 60 anos desde que ele gravara sua primeira composição, “Barulho de trem”, e meio século desde que lançara “Clube da Esquina”, LP duplo com Lô Borges, que deu à sua música o status de movimento.
Ainda em 2022, “Clube” foi eleito o melhor álbum brasileiro da História numa votação realizada pelo podcast “Discoteca Básica” entre 162 especialistas de diferentes áreas ligadas à indústria fonográfica. E Milton também foi tema de um espetáculo musical, “Os sonhos não envelhecem”, dirigido por Dennis Carvalho.
No dia do aniversário de 80 anos, 26 de outubro, o cantor e compositor ganhou de presente o álbum “Milton” gravado pela cantora Mônica Salmaso e o pianista André Mehmari com a sua obra. “É uma música mestiça inclusiva por natureza, sem precisar ter cartilha”, definiu Mehmari em entrevista ao GLOBO no lançamento do disco.
Também em 2022, relíquias encontradas entre as primeiras gravações de Milton, registradas entre 1964 e 1965 e até então disponíveis apenas em vinil, foram digitalizadas pelo projeto Raridades Analógicas, da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles. As 17 faixas estão disponíveis no streaming.
Agora, mesmo aposentado das turnês (“Quero continuar compondo e cantando. Não vou deixar de mexer com música”, diz), Milton seguiu ressoando entre a juventude. Em um dos últimos shows do Coldplay no Rio, em março, os astros da banda o chamaram para dividir um “Maria, Maria”.
Discos-tributo saem aos montes, e álbuns como o “Clube da Esquina” permanecem como norte para sucessivas gerações de artistas brasileiros e estrangeiros que buscam uma música com beleza, frescor e comunicação imediata.
Ao mesmo tempo, composições como “Travessia”, “Coração de estudante”, “Para Lennon e McCartney”, “Cais”, “Maria, Maria”, “Cravo e canela”, “Encontros e despedidas” e “Ponta de areia” continuam tocando nas rádios, no streaming e nos shows dos mais diversos grupos.
Artista do seu tempo, Milton não se privou de fazer parcerias e duetos com os maiores dos seus contemporâneos — Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan... — e, junto a eles, tanto se contrapôs aos desmandos da ditadura (em 1973, gravou “Milagre dos peixes” como disco instrumental por ter tido parte de suas letras censurada) quanto celebrou a volta da democracia.
Bituca, como é carinhosamente chamado pelos amigos e fãs, deu forma definitiva a canções alheias (como a “Beatriz”, de Chico e Edu Lobo) e forneceu composições essenciais às carreiras de cantoras como Elis Regina, Gal Costa e Simone. E, como se fosse pouco num Brasil que disfarça mal o seu racismo, estampou orgulhoso seu rosto negro e os cabelos trançados em capas de discos e programas de TV que fizeram história.
Quando o país mal falava de desmatamento e da necessária proteção à Amazônia, Milton já era um defensor da floresta, realizando expedições e defendendo os povos originários. Suas conversas com ribeirinhos e indígenas que conheceu durante os 18 dias viajando de barco ao longo do Rio Juruá, no Acre, resultaram no disco “Txai”, de 1990. Com participação do xamã ianomâmi David Kopenawa, o trabalho fez parte de uma campanha de apoio à Aliança dos Povos da Floresta.
Em 2018, ano em que realizou duas expedições pelo Rio Negro e seus afluentes, Milton escreveu um depoimento ao Globo sobre a beleza do arquipélago de Anavilhanas e a riqueza das culturas indígena e ribeirinha. O músico fez um alerta, que continua atual.
“Faço questão de chamar a atenção de todos para a necessidade extrema de que cada um de nós se torne um defensor deste que é o maior patrimônio brasileiro”, escreveu o artista.
O Prêmio Faz Diferença, diz Milton, junta-se às homenagens por seus 80 anos e sua “travessia” na música popular brasileira.
— Depois de todas as coisas maravilhosas que aconteceram nessa turnê, além das várias homenagens que tenho recebido de muitos lugares do mundo, sem dúvida, esse é mais um acontecimento marcante para mim — avalia ele. — Receber um prêmio tão importante, vindo de um veículo que me acompanha durante essa trajetória de mais de 60 anos de carreira, me proporciona uma felicidade sem tamanho.
Como fez na turnê, em que ressaltou as parcerias musicais de sua carreira, o cantor e compositor dedicou o Faz Diferença aos seus amigos.
— Esse é o tipo de coisa que faz com que a gente tenha muito orgulho do que construímos ao longo da vida. E, como não poderia deixar de ser, já quero me antecipar e dedicar esse prêmio a todos os parceiros e amigos que tanto me ajudaram nessa travessia.