Maternidade

Maternidade real: como as mães contemporâneas vivenciam a maternagem

Mães buscam diminuir a romantização em torno da maternidade

Isabelle Assunção com o filho Arthur, de 3 anos de idade - Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco

Filho, trabalho, casa, redes sociais, autocuidado, lazer. Essas são algumas das palavras comuns à rotina das mães atuais, mulheres que ainda sentem a pressão social para lidar com as várias facetas do mundo moderno e que, enquanto mães, estão buscando transformar realidades, exercendo o maternar com afeto e dedicação, mas procurando, também, desmistificar uma possível romantização excessiva que imperou durantes anos (e às vezes ainda impera) quando o assunto é maternidade.  

Como explica a psicóloga Gabriele Gomes, na medida em que a sociedade vai avançando, os nossos comportamentos são modificados, e não é diferente com a maternagem.

“Grande parte das mães da década de 1990, por exemplo, se dedicavam apenas ao cuidado dos filhos e da sua família. Hoje, esta mulher se divide entre a jornada de atividades dentro e fora do lar. Com isso, o compartilhamento do cuidado é um dos comportamentos que ficaram mais frequentes na vida da mãe moderna, pois ela busca atender as necessidades do lar e dos filhos, sem deixar de lado os seus próprios interesses”, comentou.

De acordo com a especialista, as mães continuam se cobrando e sendo cobradas socialmente, o que faz com que o sentimento de culpa possa surgir.

“Se esta mãe trabalha e compartilha o cuidado, é cobrada pela sociedade por ‘não cuidar do seu filho’, provocando nelas o sentimento de culpa. Se ficam em casa, sentem-se culpadas por não trabalhar e oferecer melhores condições de vida aos filhos. A conciliação destas jornadas ainda é uma questão na vida das mulheres, principalmente daquelas que não tem ou não podem pagar por uma rede de apoio. Costumo dizer que, principalmente no puerpério [período do pós-parto], a maternidade é solitária, cheia de desafios e medos. É fundamental ressaltar a participação ativa do pai neste cuidado e na criação da criança”, apontou.

Gabriele Gomes, psicóloga - Foto: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

Acompanhar ou compartilhar momentos da chamada maternidade real, movimento que tem crescido especialmente nas redes sociais, pode trazer percepções que auxiliem as mães. Contudo, é preciso ter em mente que cada pessoa vive uma experiência diferente e que não há padrões completamente definidos.

 

“A desconstrução da romantização da maternidade tem uma influência positiva no que diz respeito ao grande desafio que é cuidar de um ser em formação e refletir sobre padrões inalcançáveis impostos pela sociedade a estas mulheres, acarretando impactos na saúde mental. Mas é imprescindível que todas as informações sejam analisadas, priorizando aquelas que dizem respeito à saúde e ao bem estar de mãe e filho. Refletir sobre o que se encaixa na sua maternidade, no seu contexto, na sua condição financeira e vivenciar a maternidade de forma mais leve”, disse.

Mãe do pequeno Abener, de 4 anos, ela ressalta as diferenças que permeiam o universo materno. “Cada mulher tem uma experiência diferente com a maternidade, na verdade, com cada filho essa mulher vive uma maternidade diferente. Esse termômetro de dificuldades e alegrias oscilam o tempo inteiro, o que nos resta é continuar buscando conhecimentos que nos auxiliem nesta tão grande missão e aprender com cada oscilação, sejam elas boas ou ruins. É importante não se medir com a régua de outras mães e respeitar seu processo de maternagem”, completou.

Nutricionista e mãe do pequeno Arthur, de 3 anos de idade, Isabelle Assunção, 35, revela que por muitas vezes vive a angústia de não saber se está sendo boa o suficiente diante das demandas do dia a dia materno. Ela, no entanto, procura manter a compreensão de que nem tudo precisa estar sob o seu exclusivo controle e de que é necessário, também, reservar momentos para si. Mas, admite, é difícil exercer essas ações na prática.

“Várias vezes eu me pego pensando: será que o tempo que eu tenho com ele está sendo suficiente? E quando eu tenho esse tempo, será que está sendo produtivo? Porque a gente já é engolido pela rotina do trabalho naturalmente e, além dessa rotina do trabalho que é exaustiva, às vezes a gente tem dias bons ou dias ruins, e quando a gente chega em casa tem uma criança lá te esperando, querendo 100% da sua atenção, e às vezes você não está 100%. Às vezes ele quer brincar e você não está com disposição. É difícil, a gente tem que contar com uma rede de apoio, que nem todo mundo tem, mas ela é essencial”, disse.

Trabalhando de segunda a sexta, das 7h às 17h, no Hospital Eduardo Campos da Pessoa Idosa, localizado no bairro da Estância, no Recife, Isabelle compartilha uma rotina comum a milhares de mulheres.

Isabelle Assunção com o filho Arthur, de 3 anos de idade - Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco

“Quando eu chego em casa, ainda coloco comida no fogo, ainda vou fazer as coisas de casa. Então, é uma rotina tripla mesmo. A gente se cobra porque não conseguimos fazer tudo perfeito. Não tem como fazer tudo isso, treinar, trabalhar, ser mãe, dona de casa. E aí é que gera essa angústia, a ansiedade vem à tona, por conta dessa autocobrança. A sociedade cobra que esse seja um papel materno. Mas precisamos entender que o apoio do pai não é ajuda, é atribuição, ele tem responsabilidades iguais, frisou”.

Contrária à romantização exagerada da maternidade, Isabelle apoia e pratica a iniciativa de se compartilhar momentos e experiências reais.

“A gente viveu muito esse romantismo da maternidade, da gestação, que não é real. A gestação tem muitos desafios, muitas dificuldades, mas, claro, cada uma vive a seu modo, nenhuma gestação é igual a outra. Sendo bem honesta, eu sou a favor dessa não romantização, de a gente passar relatos reais, até porque filho requer uma mudança enorme. Minha vida mudou completamente, de A a Z. Eu era uma pessoa que tinha uma  liberdade, uma autonomia, de ir para onde eu quisesse, fazer o que eu queria, na hora que eu quisesse. E isso muda completamente porque ele é o protagonista no sentido de que a minha vida vai depender da rotina dele. E quando a gente traz relatos reais, a gente se apoia, gera um apoio entre uma mãe e outra”.

Mas, naturalmente, todas as dificuldades que envolvem o maternar não diminui o amor e cuidado com o filho.

“Eu acho que a palavra que talvez mais represente a maternidade é o desafio. É um constante desafio. Você pode ser a melhor mãe do mundo, nunca vai deixar de ser um desafio para você. Você sempre vai se cobrar, sempre se perguntar se está sendo boa o suficiente. Vai ter momentos de angústia e de muita alegria também porque não tem quem pague um sorriso e a criança olhar para você e dizer que te ama. Não tem nem como explicar isso, é um amor literalmente incondicional, parece clichê, mas de fato a gente só sabe quando a gente sente”, disse.

Para a médica dermatologista Gleyce Fortaleza, 41, mãe de Isabela,10, e de Henrique, 3, o processo de autocobrança excessiva foi diminuindo com o passar do anos.

Gleyce Fortaleza com os filhos Isabela e Henrique - Foto: David Barros/Divulgação

Quando a filha mais velha tinha a idade que hoje tem o caçula, a mãe procurou acompanhamento psicológico para a pequena, buscando entender se a sua rotina intensa de trabalho, com muitas viagens e precisando passar alguns períodos fora de casa, afetaria o desenvolvimento da criança, o que acabou sendo descartado pela psicóloga.

“Após quatro sessões de terapia, ela disse: ‘mãe, sua filha está ótima, pode trabalhar tranquila’. E aquilo para mim foi como uma benção”, lembrou. 

O mais importante, avalia Gleyce, é estar plenamente presente no processo de educação e afeto, ainda que seja necessário se ausentar por questões de trabalho.

“Eu trabalho de 10 a 12 horas por dia. Acho que a gente nunca fica 100% sem culpa, mas eu já melhorei muito. Hoje eu estou aqui em São Paulo, trabalhando, vou perder o Dia das Mães dos meus dois filhos. Se fosse em outros tempos, eu estava arrasada. Hoje não, a gente já conversa, eles entendem. O que ocorre é que você se cobra e a sociedade também cobra muito você, mas eu acho que estamos evoluindo nesse sentido. Com o tempo, a gente vai ficando mais madura, mais segura, e os nossos filhos vão dando esse feedback de que estão bem”. 

Assim como acontece com boa parte das mães contemporâneas, a autocobrança também está presente no dia a dia da empresária Altamiza Melo, 39. Presidente da Central Única das Favelas (CUFA Pernambuco), ela é mãe de Inaê, de 10 anos de idade, e Akim, de 6 anos.

Altamiza Melo com os filhos Inaê e Akim - foto: David Barros/Divulgação

“Eu me cobro 24 horas. Às vezes, você está na frente do computador, ou está na rua trabalhando com o público, e não consegue acompanhar tão de perto as coisas. Eu me cobro bastante por essa falta de tempo e especialmente hoje que o mundo é imediatista, então as nossas crianças também tendem a ser um pouco imediatistas, e aí a gente se cobra também em trabalhar isso”, analisou. 

Mesmo com a jornada intensa, a presença na rotina dos filhos está entre as suas prioridades.

“É uma ginástica louca, mas eu acho que eu não me sinto culpada. Eu consigo me fazer presente nas atividades do dia a dia. Mesmo com essa correria, eu estico as 24 horas e consigo cumprir as demandas dos dois lados. Mesmo sendo dois mundos diferentes, mas eu consigo cumprir com as minhas obrigações de mãe, sendo aquela mãe que olha o livro, que senta para estudar. Eu consigo me fazer presente mesmo com a demanda e o volume de trabalho que eu tenho”, comentou.

Trabalhando diretamente em contato com centenas de mães, ela reflete que a angústia é um sentimento comum às mulheres que vivem em comunidades. Mas destaca, especialmente, a rede de apoio e solidariedade que se forma entre elas.

“Essa é uma angústia geral. As mães da favela têm essa preocupação de estar sempre monitorando os filhos. E o celular, as redes sociais, ajudam a gente a acompanhar, a ver o que os meninos postam, a ver o que é que eles estão vendo, se estão online, o que foi que comeu. Há essa rede de cuidado e às vezes a gente conta muito também com essa mãe do lado, que na favela tem muito essa rede de apoio voltada a essas mulheres que têm uma quantidade maior de filhos e ficam impossibilitadas de trabalhar. E aí elas se tornam cuidadoras dos filhos das outras que estão aí nas suas outras funções. Essa é uma rede de apoio muito forte porque nesse poder de mobilização que as mulheres têm e ao mesmo tempo do autocuidado, é você cuidar da sua casa e ao mesmo tempo cuidar da casa do outro quando você se permite a ser essa pessoa”, disse. 

A jornalista Juliana Sá, 43, servidora pública, compartilha a guarda do filho, João, de 6 anos, com o pai da criança e tem o apoio da mãe sempre que precisa.

Juliana Sá com o filho, João - Foto: Arquivo Pessoal

“Hoje minha rede de apoio é minha mãe, que está com 75 anos. Avó e neto se amam e adoram ficar juntos. Mas tenho muito cuidado para não sobrecarregar muito ela. Geralmente, deixo os dois quando eles mesmos pedem para ficarem juntos, ou no caso de uma necessidade grande. Sei que muitas mães não contam com esse apoio e só tenho a agradecer por ter esse privilégio. A guarda compartilhada com o pai também proporciona os momentos que eu preciso para mim”, disse. “Sou de uma geração de mães sobrecarregadas e cansadas. Conseguimos muitos avanços, como independência financeira, mas continuamos acumulando as funções das mulheres de gerações anteriores”, acrescentou. 

Para ela, é importante não romantizar a maternidade, mas também não focar apenas nos momentos difíceis.

“Acho esse movimento de desromantização muito importante. Nunca fui romântica em relação à maternidade, e li muito sobre o assunto. Achava que estava sabendo de tudo, só que não”, comentou aos risos. “Quando me tornei mãe, tomei um choque de realidade porque muita coisa ninguém contou. Também não acho que devemos demonizar a maternidade. Cada experiência é única. A mesma mãe pode ter experiências totalmente diferentes com seus filhos. O fato é que não é fácil, mas também é lindo e apaixonante”, destacou. 

Sobre o maternar, a servidora conclui: "Maternar é se desdobrar para ser presente o máximo de tempo possível. Mesmo cansada, mesmo triste, mesmo pensando nas mil outras demandas da vida. Não existe ‘estar’ mãe. A gente é mãe em qualquer lugar, em qualquer horário. É estar no trabalho e ao mesmo tempo pensando na saúde do filho, lembrando que precisa marcar o médico, pensando no desempenho dele na escola, em alguma coisa que ele falou que fez você refletir. Ao mesmo tempo é voltar a ser criança, é voltar a gostar de brincar, de assistir desenho, de jogar bola. É querer e precisar estar bem para cuidar dele o máximo de tempo possível”.