PF apura troca de acesso de Bolsonaro em aplicativo do SUS como indício de que Cid não agiu sozinho
Semana decisiva para investigações do caso terá depoimentos de ex-presidente e do ex-ajudante de ordens
Em uma semana decisiva para as investigações da suposta fraude nos cartões de vacina do ex-presidente Jair Bolsonaro, familiares e assessores, a Polícia Federal tem em mãos elementos para questionar a tese de que o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, que está preso, atuou sozinho e vê indícios de associação criminosa na trama que envolve o antigo mandatário.
Com o avanço da apuração, a PF aponta como principal elemento que mostra o conhecimento de Bolsonaro a troca no e-mail vinculado à conta dele no aplicativo ConecteSUS no fim do governo — a gestão passou do tenente-coronel para Marcelo Costa Câmara, auxiliar que seguiu ao lado do chefe pós-Presidência.
O fato deve ser usado para confrontar uma eventual versão de que Cid agiu sozinho, sem a anuência do ex-presidente. O militar, que vai prestar depoimento na quinta-feira, tem sido aconselhado a assumir a própria culpa — Bolsonaro, por sua vez, será ouvido amanhã.
O ex-ajudante de ordens também está envolvido em outros casos que podem respingar no antigo ocupante do Palácio do Planalto e em seus parentes. Mensagens reveladas pelo portal Uol e obtidas pelo Globo, trocadas entre Cid e duas então assessoras de Michelle Bolsonaro, indicam a existência de uma orientação para que as despesas da ex-primeira-dama fossem pagas em dinheiro vivo.
Há nas conversas também o temor de que o episódio, se descoberto, fosse interpretado como um esquema de “rachadinha”, a exemplo da investigação que atingiu o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Em outra frente derivada da quebra de sigilo, as mensagens de Cid revelaram uma atuação ativa na articulação do suposto esquema de falsificação dos documentos de imunização, segundo a PF. Dados falsos dele, de sua esposa e filhas também foram inseridos no sistema da Saúde, segundo investigadores, o que o torna beneficiário das fraudes apuradas. Outro braço da ação ocorreu em direção ao ex-presidente.
Passagem de bastão
Segundo a apuração, o login de Bolsonaro no aplicativo ConecteSUS estava associado ao e-mail de Cid até o dia 22 de dezembro do ano passado. Naquela data, foi gerado um certificado de vacinação do então mandatário com o registro falso de duas doses da vacina da Pfizer. Minutos depois, o e-mail de login foi alterado para o do coronel Marcelo Costa Câmara, então assessor especial da Presidência — ele foi nomeado para auxiliar Bolsonaro após o final do mandato.
A mudança se deu, segundo a PF, porque Cid estava prestes a deixar a função de ajudante de ordens de Bolsonaro. A partir de 1º de janeiro deste ano, o ex-presidente passaria a ser assessorado por oito auxiliares, sendo um deles o coronel Câmara, homem de confiança do ex-mandatário que viajaria com ele para a Flórida.
De acordo com a PF, a alteração cadastral foi feita a partir da conexão de rede do Palácio do Planalto, outro indício de que Bolsonaro sabia da fraude.
No despacho em que autorizou a operação, o que incluiu um mandado de busca e apreensão na casa de Bolsonaro, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que a iniciativa foi levada adiante com, “no mínimo, conhecimento e aquiescência” do ex-presidente.
Os elementos colhidos até aqui reforçaram duas linhas de investigação: a primeira é a do crime de inserção de dados falsos no sistema eletrônico do Ministério da Saúde, o que, se comprovado, prevê uma pena de até 12 anos de prisão. A segunda é a formação de uma associação criminosa para praticar o delito. Nesse caso, a punição poderia chegar a até três anos de reclusão.
Investigadores descartam a possibilidade de apurar uso de documento falso e falsidade ideológica, cuja pena é de até cinco anos de prisão, porque seria de difícil comprovação no inquérito em andamento. Isso ocorre porque os locais que exigem a apresentação de comprovante de vacinação só conferem visualmente o documento, sem armazenar cópias.
As vacinas registradas em nome de Bolsonaro foram inseridas no sistema da Saúde no dia 21 de dezembro do ano passado, às 18h59min e às 19h, antes de embarcar para uma viagem aos Estados Unidos. Segundo esse registro falso, o ex-presidente teria tomado a primeira dose da Pfizer em 13 de agosto e a segunda em 14 de outubro, no Centro Municipal de Saúde de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Seis dias depois, em 27 de dezembro, os dados de vacinação de Bolsonaro foram apagados do sistema por uma servidora da prefeitura de Duque de Caxias (RJ), que justificou a exclusão com a anotação de “erro”, de acordo com a PF.
Essa cronologia e as suspeitas de irregularidades verificadas até aqui serão exploradas nos depoimentos desta semana. Amanhã, estão previstas as oitivas de Bolsonaro e do coronel Câmara. O ex-presidente passará hoje por treinamento com sua equipe de advogados.
“Sem adulteração”
O objetivo inicial da PF era ouvir Bolsonaro no último dia 3, quando foi deflagrada a operação que prendeu seis suspeitos de atuarem no esquema fraudulento. A defesa de Bolsonaro, no entanto, pediu o adiamento do depoimento, porque queria ter acesso ao inquérito.
Na quinta-feira, será a vez de Cid. Quando foi detido, ele optou pelo silêncio, porque seus advogados não haviam tido acesso aos autos. Após a prisão, ele trocou de advogados e passou a contar com um a assessoria do criminalista Bernardo Fenelon, especialista em delações premiadas e em lavagem de dinheiro. O defensor anterior, Rodrigo Roca, também atua para Flávio Bolsonaro. Na sexta, os agentes vão ouvir a mulher de Cid, Gabriela Santiago, que também teve dados falsos inseridos no sistema do Ministério da Saúde.
Procurado, o advogado de Bolsonaro, Paulo Amador da Cunha Bueno, informou que não vai comentar o inquérito. O ex-presidente tem negado participação em quaisquer irregularidades. Em declarações públicas, a defesa tem alegado ainda que o ex-presidente, na condição de chefe de Estado até dezembro passado, não precisou apresentar o seu comprovante de vacinação para entrar nos Estados Unidos. Para a PF, no entanto, a principal linha de apuração não é o uso do documento falso, mas, sim, se o ex-mandatário tinha conhecimento e se beneficiou da fraude.
— Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final — declarou Bolsonaro no dia da operação.
Procurado, Câmara não se manifestou. A defesa de Mauro Cid não comentou.