Cunhada, primo, irmãos

Familiares da ex-mulher de Bolsonaro são investigados por "rachadinha" no gabinete de Carlos

Nove servidores ligados ao filho do ex-presidente têm vínculos com Ana Cristina Valle e sacaram, ao todo, R$ 3 milhões; seis retiraram, em média, mais de R$ 5 mil por mês, diz MP-RJ

Ana Cristina Valle foi chefe de gabinete de Carlos Bolsonaro (Republicanos) na Câmara Municipal do Rio: ela liderava um grupo familiar - Arquivo

Das 32 pessoas físicas e jurídicas investigadas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) no inquérito que apura as suspeitas de rachadinha no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), 14 fazem parte do núcleo familiar liderado por Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e ex-chefe de gabinete do filho do ex-presidente. Dois deles já admitiram que nunca trabalharam para o parlamentar.

O MP-RJ constatou que nove integrantes do núcleo ligado a Ana Cristina Valle sacaram um total de R$ 3 milhões entre 2005 e 2018, após receberem os salários da Câmara Municipal. Nesse grupo, seis retiraram, em média, valores superiores a R$ 5 mil por mês. O investigadores identificaram, segundo apurou O Globo, que alguns dos saques ocorriam logo após o pagamento dos proventos. A mecânica reforça as suspeitas de que havia um esquema de recolhimento de parte dos salários de servidores do gabinete.

O campeão de retiradas foi Guilherme Henrique de Siqueira Hudson, primo de Ana Cristina, com 630 saques entre 2008 e 2018, no valor total de R$ 1,3 milhão. Isso equivale a um saque médio mensal de R$ 11,3 mil. Nesse período, ele foi assessor-chefe do vereador Carlos Bolsonaro.

Monique de Carvalho Moreira Hudson, cunhada de Ana Cristina, fez 424 saques que somaram R$ 416 mil de outubro de 2010 a dezembro de 2014. O montante equivale a valor médio mensal de R$ 8,3 mil.

 

De acordo com o laudo do MP-RJ, quatro dos investigados ligados à ex-mulher de Bolsonaro transferiram cerca de R$ 27 mil para contas bancárias de titularidade de outras pessoas do gabinete de Carlos Bolsonaro.

Reportagem da revista Época, publicada em abril de 2019, revelou que pelo menos dois membros do núcleo admitiram que não trabalhavam no gabinete, embora estivessem nomeados. Uma delas é Marta da Silva Valle, professora de educação infantil e cunhada de Ana Cristina Valle, que passou sete anos e quatro meses lotada no gabinete entre novembro de 2001 e março de 2009. Ela disse à revista que nunca havia trabalhado para Carlos: “Não fui eu, não. A família de meu marido, que é Valle, que trabalhou”. O salário bruto de Marta Valle chegou a R$ 9,6 mil, e, com os auxílios, chegava a R$ 17 mil. Segundo a Câmara, ela não tinha o crachá de assessora.

Funcionário fantasma
Gilmar Marques, ex-cunhado de Ana Cristina, também questionado pela revista em 2019, disse que não se recordava da nomeação: “Meu Deus do céu. Ah, moça, você está me deixando meio complicado aqui. Eu ganhava? Isso aí você deve estar enganada”. Ele também nunca teve identificação funcional da Câmara Municipal do Rio.

Marta da Silva Valle fez 304 saques após receber os proventos, entre 2005 e 2009, somando um total de R$ 364 mil. Já Gilmar Marques fez 208 lançamentos, entre 2005 e 2008, em total de R$ 240 mil. Marta fez ainda duas transferências para Ana Cristina Siqueira Valle e Andrea Siqueira Valle (R$ 5.890).

Como O Globo revelou na semana passada, com base no mesmo inquérito, o chefe de Gabinete de Carlos Bolsonaro desde 2018, Jorge Luiz Fernandes recebeu um total de R$ 2,014 milhões em créditos provenientes das contas de outros seis servidores nomeados pelo filho do ex-presidente.

O levantamento, feito pelo laboratório de Tecnologia de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro do MP-RJ, com autorização da Justiça fluminense, além de mostrar a suspeita de rachadinha, revelou que Fernandes usou contas pessoais para pagar despesas de Carlos. A promotoria quer saber agora se os pagamentos foram eventuais ou regulares; neste último caso, ficará provado que Carlos se beneficiou diretamente do desvio dos salários de seus servidores.

O advogado de Carlos Bolsonaro, Antônio Carlos Fonseca, reafirmou a posição divulgada em nota na semana passada: “A defesa de Carlos Bolsonaro esclarece que é preciso apurar se ocorreu, mais uma vez, o lamentável vazamento de possíveis documentos e informações que estão sob sigilo determinado pelo Poder Judiciário. Aparentemente, a matéria divulga, de forma seletiva, informações sigilosas com o nítido intuito de promover ataques ao Vereador. A defesa reitera que o vereador está à disposição para prestar esclarecimentos e fornecer qualquer tipo de informação ao MP”.

Nome "emprestado"
Cileide Barbosa Mendes, identificada como empregada doméstica nas investigações sobre a rachadinha, teve o nome utilizado para a abertura de três empresas da área de telecomunicações para o tenente-coronel do Exército Ivan Ferreira Mendes, também ex-marido de Ana Cristina Valle, conforme mostrou o jornal Folha de S. Paulo, em maio de 2019. À época, Cileide trabalhava para Carlos Bolsonaro.

Ao ser ouvido pelo jornal na ocasião, o militar reconheceu que Cileide “emprestou o nome” para ele, mas não recebia proventos na Câmara sem trabalhar para o vereador.

Ex-babá da família, Cileide morou em uma casa que até 2018 funcionou como escritório político do ex-presidente Jair Bolsonaro. De acordo com o chefe de gabinete de Carlos, Jorge Luiz Fernandes, Cileide trabalhava formalmente para o vereador, mas, na prática, cuidava da casa.

Cileide, que não foi localizada pelo Globo, hoje é dona de uma empresa de instrumentos cirúrgicos.