Acúmulo de oito décadas de crises favorece extrema direita na Argentina; entenda
A deterioração da situação econômica, somada ao desgaste dos partidos tradicionais, pode levar o país a eleger um presidente de extrema direita
Nos últimos 80 anos, a Argentina foi cenário de uma sucessão de crises econômicas, financeiras, políticas e sociais, que provocaram traumas numa sociedade que, neste 2023, quando os argentinos deverão ir novamente às urnas para eleger o sucessor do presidente Alberto Fernández, demonstra estar farta dos partidos políticos tradicionais.
O desgaste do peronismo — envolvendo todas suas facções internas, entre elas o kirchnerismo — e da oposição tradicional liderada pela aliança Juntos pela Mudança — para muitos argentinos nem juntos, nem representantes de uma mudança —, somada a uma aceleração da crise econômica, está dando forte impulso à candidatura de Javier Milei, de extrema direita, admirador de Jair Bolsonaro e Donald Trump.
Entenda o cenário atual da Argentina:
Inflação: A Argentina tem uma das taxas de inflação mais altas do mundo, na região superada apenas pela Venezuela — que deve passar de 500% em 2023. Em 2022, o país teve 94,8% de inflação, e nos últimos 12 meses a taxa já superou 100%. O país registra altas taxas de inflação desde a década de 40, e os piores anos desde a redemocratização do país, em 1983, foram os de 1989 (3.079%) e 1990 (2.314%).
Pobreza: Depois de ter registrado uma taxa de pobreza acima de 60%, em 2003, a Argentina viveu uma recuperação, que se interrompeu nos últimos anos do governo de Cristina Kirchner (2007-2015) e piorou de forma expressiva nos governos de Mauricio Macri (2015-2019) e do atual presidente, Alberto Fernández. Macri terminou o governo com 40,8% dos argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza, e atualmente a taxa oficial é de 39,2%. Dados do Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica, porém, indicam que 43% dos argentinos são pobres.
Descontrole cambial: Economistas estimam que, no que é chamado de uma desvalorização disfarçada do peso, existem quase 50 tipos de dólar circulando no país. O dólar oficial, que tem um limite de compra de US$ 200 mensais por pessoa, está em torno de 230 pesos. Já o dólar blue, que pode ser comprado no mercado paralelo, chegou a quase 500 pesos no final de abril, e atualmente está em cerca de 470 pesos.
Crise política: Em abril, o presidente Fernández, muito pressionando pelo kirchnerismo, anunciou que não concorrerá à reeleição. A aliança de governo entre peronistas e kirchneristas deverá definir seu candidato nas primárias de agosto, e atualmente os nomes mais fortes são os do ministro da Economia, Sergio Massa, e do embaixador no Brasil, Daniel Scioli. Fernández está enfraquecido, e a vice-presidente, Cristina Kirchner, dedicada a preservar sua base de poder e enfrentar problemas na Justiça.
O fenômeno Milei: O economista e deputado Javier Milei, fundador do partido Avança Liberdade, está em campanha presidencial desde o final de 2021, quando foi o grande fenômeno eleitoral das eleições legislativas daquele ano. Sua candidatura é a única certa atualmente e vem crescendo nas pesquisas. Alinhado com as ideias de Donald Trump e Jair Bolsonaro, o candidato da extrema direita argentina está, segundo pesquisas, liderando a corrida.
Eleições 2023: O calendário eleitoral argentino começará com as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), em 13 de agosto, quando serão definidos os candidatos da eleição. Será, também, o principal retrato do processo eleitoral, onde será possível ver o posicionamento real de todos os candidatos. O primeiro turno será em 22 de outubro, e o segundo em 19 de novembro. Para ganhar no primeiro turno, um candidato precisa obter 45% dos votos, ou 40%, com uma vantagem superior a 10% em relação ao segundo colocado.
Segundo recentes pesquisas que circulam entre analistas e consultores de longa trajetória como Mario Riorda, autor de livros sobre comunicação política e campanhas eleitorais na América Latina, o candidato do Avança Liberdade, partido sem estrutura nacional e cujo único dirigente conhecido é Milei, está na liderança. Neste momento, disse Riorda ao GLOBO, o candidato da extrema direita argentina tem não somente chances de conquistar uma vaga no segundo turno, como de ganhar a eleição.
— As pesquisas mostram Milei com um piso de 30%, superando todos os demais pré-candidatos. Vemos uma fuga de votos do peronismo e da oposição mais moderada para Milei — explica o especialista argentino, que faz uma observação importante: — Toda a agenda de debates da campanha está sendo pautada por Milei. Estamos falando de dolarização da economia, discutindo se a educação pública deve ser obrigatória e haver livre posse de armas.
Na semana em que a cotação do dólar chegou a quase 500 pesos, no final de abril, Milei lançou um livro sobre seu projeto de dolarizar a economia, sua principal estratégia para conter a inflação, que em março chegou a 7,7% e acumulou, em 12 meses, aumento de 104,3%. A escalada dos preços internos é um dos maiores dramas que enfrenta o país e que pode provocar, estimam analistas, a pior derrota já sofrida pelo peronismo nas urnas.
Em 2020, a inflação foi de 36,1%, em 2021 chegou a 50,9%, e no ano passado fechou em 94,8%. Nos últimos 80 anos, a Argentina teve 48 anos com taxa de inflação de 2 dígitos, 14 anos com taxa de três dígitos, 2 anos com taxa de quatro dígitos, e 15 anos com apenas 1 dígito. Os piores anos desde a redemocratização do país, em 1983, foram os de 1989 (3.079%) e 1990 (2.314%). A hiperinflação de 89 acabou antecipando a saída do então presidente Raúl Alfonsín, da hoje enfraquecida União Cívica Radical (UCR).
O vencedor das eleições daquele ano, o peronista Carlos Menem (1989-1999), assumiu seis meses antes o poder e só conseguiu estabilizar a situação em 1991, com a implementação do plano de conversibilidade, que atrelou o peso ao dólar. Até janeiro de 2002, quando o então presidente peronista Eduardo Duhalde (2002-2003) desvalorizou o peso, um peso valia um dólar, e a inflação esteve sob controle. Depois de chegar a 25% em 1992, a taxa baixou para 11% no ano seguinte, e foi de apenas um dígito no resto da década de 90 — chegando a 2% em 1996.
Milei apela justamente a essa lembrança. Mesmo sem entender o plano do candidato de extrema direita, muitas pessoas, de todas as classes sociais, dizem se inclinar pelo voto a Milei “porque ele é o único que tem um plano para sair da inflação”.
O que Milei não diz é que sair da conversibilidade foi traumático para o país. A pobreza disparou, e chegou a 62% em 2003, de acordo com dados do Centro de Estudos Distributivos, Trabalhistas e Sociais (Cedlas, na sigla em espanhol). O Equador, que dolarizou sua economia há 23 anos, conteve a inflação, mas a pobreza continua sendo um drama: 25% da população é pobre e 10,7% vivem na pobreza extrema.
A situação do sistema bancário argentino é outra bomba relógio que o próximo governo deverá enfrentar. Em 2000 e 2001, os governos de Fernando de la Rúa (1999-2001, que renunciou no meio de seu mandato pela crise econômica) e Duhalde confiscaram depósitos bancários, no que foi chamado, primeiro, de corralito, e, posteriormente, de corralón — um confisco ampliado. N
aquele momento, o problema era a escassez de dólares, que impossibilitava o saque de depósitos em moeda americana — e que por lei tinham valor equivalente em pesos e dólares. Todos os argentinos lembram da célebre frase de Duhalde, que, em seu discurso de posse, em janeiro de 2002, disse que “quem tiver depositado dólares, receberá dólares”.
Dias depois, o então presidente assumiu que sua promessa não poderia ser cumprida. A desvalorização do peso estava a caminho, e a Casa Rosada admitiu que os dólares depositados seriam convertidos para pesos — já desvalorizados —, provocando uma perda de poder aquisitivo para os correntistas.
Atualmente, os bancos argentinos são os principais financiadores do Banco Central da República Argentina (BCRA) através da compra de títulos emitidos para cobrir as despesas do Tesouro Nacional. A emissão desses títulos, afirmam fontes do setor financeiro, está descontrolada (pelo elevado déficit fiscal), e isso poderia causar problemas sérios. Um dos cenários mais dramáticos, comentam as fontes, seria repetir o chamado Plano Bonex, aplicado por Menem em 1989, que implicou uma troca compulsória de aplicações de renda fixa por títulos públicos.
O aprofundamento da crise econômica deve levar a Argentina e dar um giro à direita nas próximas eleições, talvez à extrema direita. As promessas de Milei — entre elas eliminar o Banco Central — fazem sucesso nos setores populares, mas também entre eleitores de classe média e média alta. As queixas ao que Milei chama de "casta política" são muitas: escândalos de corrupção, subsídios a setores sociais que vivem graças ao Estado e não trabalham, e aumento da insegurança, entre outras. Em conversas informais se ouvem frases como “Milei será doido, mas tem um plano. Vamos dar uma chance, porque o resto dos políticos já nos decepcionou”. Outros, mais revoltados, afirmam que, “se tiver de explodir tudo, que exploda. Ninguém aguenta mais esta agonia”.
— O que observamos na sociedade argentina é muito grave. Mais uma frustração com mais um governo democrático, e muitos argentinos começarão a pensar que os problemas de nosso país não se resolvem com democracia — afirma o analista político Álvaro Zicarelli, que até alguns meses atrás integrava a equipe de assessores de Milei.
Para ele, a reação dos setores populares — que representam mais de 50% da população — à crise econômica definirá o resultado da eleição presidencial argentina.
— Estamos vendo uma mudança de época. Hoje, o eleitor argentino prefere, em sua maioria, opções de direita e centro-direita — conclui Zicarelli.