Como o trânsito influencia o dia a dia da população? Veja o que dizem especialistas
Rotinas de estresse no trânsito podem afetar a qualidade de vida e o bem-estar das pessoas
O que lhe vem à mente quando você pensa em trânsito? Talvez sua perspectiva mude a depender da forma como você se locomove, mas é provável que haja um consenso: enfrentar longos congestionamentos, sejam eles a bordo de veículos de locomoção individual ou dentro de um transporte coletivo, ou ainda passar por altas esperas de um ônibus ou metrô (que muitas vezes vêm lotados), assim como lidar com episódios de falta de educação, podem gerar experiências extremamente desagradáveis.
E, em sendo constantes, transformar a rotina no trânsito em mais um difícil desafio diário, que pode, inclusive, gerar efeitos ao longo de todo o dia. Afinal, quem nunca chegou estressado ao trabalho após passar por maus momentos enquanto se locomovia para o local?
Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o sociólogo Josias de Paula analisa que os resultados dessa equação de causa e efeito precisam ser urgentemente considerados. “Os impactos são enormes. A questão da mobilidade deveria ser encarada com muito mais seriedade. Atualmente, morar em locais centrais para o seu cotidiano, perto do trabalho, escolas, hospitais e lazer, se tornou uma necessidade e, ao mesmo tempo, um luxo. A ocupação do espaço urbano foi e continua sendo exercida e concebida em concomitância com a expulsão dos mais pobres para as periferias, para os arrabaldes, distanciando-os das zonas onde se concentram o trabalho, a saúde, o lazer, etc.”, disse.
“Sou professor universitário e testemunho vários alunos que se veem ‘obrigados’ a perder o primeiro horário do curso noturno porque, da saída do trabalho até a chegada na universidade, gastam um tempo desproporcional de locomoção. Sabemos, todos, de pessoas que perdem três horas e meia, quatro horas e meia, no precaríssimo serviço público de transporte. Um absurdo que interfere brutalmente na qualidade de vida e nas possibilidades de vida das pessoas”, acrescentou. Para o sociólogo, algumas medidas podem ser adotadas a curto prazo para melhorar a relação da população com o trânsito.
“Uma região como o Grande Recife tem problemas de falta de planejamento tão sérios e antigos que precisamos de tempo para sanar todo o estrago. Contudo, existem coisas imediatas a fazer, entre elas o privilégio absoluto ao transporte coletivo e a proibição mesmo do carro popular em determinadas áreas”, comentou. Entre as medidas também estariam, por exemplo, a expansão de ciclofaixas e ciclovias, além da arborização em larga escala das cidades, o que tornaria as caminhadas uma forma confortável e agradável de se locomover. “A locomoção a pé deveria ser muito incentivada, pois significa viver a cidade contemplando-a, e diminui o sedentarismo da vida moderna”, opinou.
Tais ações fazem coro às defendidas pelo arquiteto e urbanista Francisco Cunha, referência no assunto mobilidade urbana. “Os veículos individuais motorizados, carros e motos, transportam algo em torno de 30% a 35% das pessoas que se locomovem nas cidades brasileiras. No entanto, eles ocupam, principalmente o carro, cerca de 80% do espaço viário, aí tem um desbalanceamento na mobilidade que é justamente esse contingente de pessoas. Os outros modos de deslocamento, que são responsáveis pelo deslocamento de 65% a 70% das pessoas, têm à disposição apenas 20% do espaço viário. Então, o que a gente vê todo dia é engarrafamento, dependendo do horário bastante intenso”, destacou.
“A gente precisa dar fluidez a outros modos de transporte que não o individual motorizado, criar e abrir caminhos para esses meios. Temos que fazer mais ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, fazer calçadas melhores e faixas exclusivas para o transporte público”, completou.
Ele defende, ainda, que seja estudada a aplicação de uma taxa de pedágio para condutores de veículos individuais que transitem nas áreas centrais das cidades, especialmente em horários onde o fluxo é intenso. Medidas semelhantes já são utilizadas em cidades como Londres, Singapura e Estocolmo.
“Deveria haver uma cobrança de um pedágio, que se chama pedágio urbano, para as pessoas serem levadas a utilizar o espaço viário nos horários de maior folga. Então, por exemplo, pagar uma tarifa, chama-se taxa de congestionamento, que se você sair num horário em que há congestionamento, você está fazendo parte do congestionamento, então você pagaria mais caro. E mais barato, ou tarifa zero, nos momentos em que não estivesse o trânsito congestionado. Essa é a medida justa do ponto de vista da mobilidade mas a resistência para ela é brutal, então dificilmente vai ser implantada tão cedo, a não ser que chegue no momento em que o travamento seja tão grande que o custo também seja extrapolado”, afirmou.
Segundo o especialista, é fundamental também uma mudança cultural. Isso porque, avalia, as pessoas precisam parar de supervalorizar o veículo automotivo individual, ao mesmo tempo em que devem compreender a importância do transporte de uso coletivo.
“O carro devia ser usado para distâncias grandes. Agora, há um preconceito contra o transporte público, as pessoas de classe média que andam de carro dizem que não andam de transporte público porque é quente, porque é inseguro, porque demora. Ora, é assim para todo mundo, mas depende da hora, se você andar na hora do rush vai ser cheio, mas se andar no fora pico, vai ser vazio”, disse.
De acordo com a psicóloga Fernanda de la Torre, vários fatores internos e externos influenciam a saúde e o bem estar das pessoas, com o trânsito podendo ser um desses elementos. “A forma de locomoção e circulação é um fator que compõe nossa rotina e a forma que vivemos esse momento do nosso dia irá impactar na nossa dinâmica em diversas esferas, seja na nossa qualidade de vida, saúde, possibilidades, relação com o tempo, relações com os outros, acessibilidade, dentre outros pontos, pois trata-se de uma necessidade básica de acesso e circulação”, comentou.
A rotina de enfrentar grandes engarrafamentos e transporte público lotado, por exemplo, pode gerar crises de estresse e afetar a qualidade de vida. Encontrar formas de lidar com esse cotidiano tem um viés individual mas, principalmente, coletivo.
“Essas ações afetam nossa qualidade de vida, nossa saúde em todas as camadas, física, emocional, social. Para lidar de forma individual pode-se pensar em estratégias que sejam possíveis e reais para minimizar os desgastes dessa rotina, como medidas para otimizar o tempo e ações que busquem auxiliar no manejo da ansiedade, porém o centro da questão é a estrutura coletiva. Buscar do poder público soluções que sejam empregadas em vários pontos dessa cadeia que é a mobilidade urbana”, salientou.
O jovem Tiago Gomes, de 22 anos, conhece bem as nuances que permeiam o trânsito. Motorista por aplicativo, ele trabalha todos os dias, com jornadas que iniciam, nos dias de semana, por volta das 5h da manhã. O expediente diário possui alguns intervalos para alimentação e descanso, mas só costuma encerrar em torno das 23h horas.
“Eu trabalho com o que eu gosto, eu gosto de dirigir, eu gosto de trabalhar com as pessoas. E gosto do trânsito também, só que às vezes é um pouco complicado, principalmente nos horários de pico, nas principais vias e nas vias que não são tão conhecidas mas que por conta de buracos também o trânsito acaba ficando bem pesado”, disse.
Nessa rotina, já compreendeu os sentimentos vinculados ao momento do tráfego, e também vivenciou episódios agradáveis e outros que indicam a falta de paciência, ou educação, de quem circula pelas vias.
“As pessoas não têm paciência uma com a outra. Eu acho que o trânsito não é impossível de lidar, mas as pessoas dificultam isso. O trânsito pesado, principalmente de segunda a sexta-feira que é quando tem mais carros circulando pela cidade e principalmente nos horários de pico, é muito complicado porque por exemplo se eu pego um passageiro de manhã que está atrasado e a gente vai ficar ali no trânsito, e aí ele já fica um pouco mais estressado”, contou.
Ativo nas redes sociais, ele criou inclusive um perfil no Instagram onde compartilha o dia a dia como motorista de aplicativo, além de abrir turmas de mentoria para ensinar estratégias que vêm funcionando em sua própria jornada.
Uma das formas de os municípios aprimorarem o tráfego nas vias é com a implementação de planos de mobilidade bem desenvolvidos e eficazes, o que se reflete também na segurança no trânsito. A Organização Mundial da Saúde (OMS) está promovendo a Década de Ação pela Segurança no Trânsito (2021-2030), que tem a meta ambiciosa de prevenir ao menos 50% das mortes e lesões no trânsito até o fim do período.
Segundo a OMS, tal Plano Global descreve as ações necessárias para alcançar o objetivo e inclui ações aceleradas para tornar as caminhadas, as bicicletas e o uso do transporte público seguros, já que são meios de transporte mais saudáveis e ecológicos.
No Recife, o Plano de Mobilidade Urbana (PMU) da cidade foi sancionado em 2021 após um processo de discussão entre a gestão e representantes da sociedade civil. “O PMU prevê algumas entregas, como o manual de desenho de ruas, que estamos lançando ainda em maio, o manual de tráfego, além de uma atualização da lei de hierarquização das vias. Essas entregas devem ocorrer ainda este ano, priorizando as tratativas públicas necessárias para garantia da democracia no processo”, afirmou o prefeito João Campos.
Para reduzir gargalos que afetam o cotidiano da população, como os engarrafamentos registrados diariamente, a prefeitura tem investido em soluções de engenharia viária, como faixa reversível, reordenamento, binários e pontes.
“A gente vem atuando fortemente para garantir cada vez mais fluidez no trânsito da cidade, adotando como umas das suas prioridades as ações voltadas para o transporte público de passageiros. Só para ter uma ideia, Recife possui, atualmente, cerca de 67 km de corredores exclusivos para transporte público. Mais de 78% dos recifenses vão ao trabalho utilizando um dos seguintes modais: transporte público, bicicleta ou a pé, o que revela a importância das faixas azuis na cidade. E o Recife conta, atualmente, com 180 km de malha cicloviária, entre ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, o que representa um aumento de mais de 600% desde 2013, quando havia 24 km, atualmente, mais de 90% desses equipamentos são conectados entre si”, comentou Campos.
Em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, ações semelhantes também estão sendo implementadas, como novos binários, mudanças de fluxos e ampliação de faixas exclusivas de ônibus e de rotas cicláveis. Além disso, a cidade iniciou a instalação de “semáforos inteligentes” e com recursos de acessibilidade.
“Nós estamos agora implantando um semáforo que tem Inteligência Artificial e dentro desse semáforo tem um algoritmo que faz a contagem de veículos. De maneira inteligente, através da tecnologia, ele tem uma câmera que lê a quantidade de veículos que está vindo de uma avenida em determinado cruzamento e o número de veículos que está vindo na outra avenida. Então, ele começa a gerenciar e liberar o fluxo de acordo com a necessidade daquelas avenidas. Até o final do ano, o nosso projeto é implementar em 40 cruzamentos os semáforos inteligentes aqui no município”, destacou o secretário executivo de Mobilidade e Ordem Pública de Jaboatão, André Ângelo.
“Nós estamos também implantando semáforos para pessoas com deficiência visual. É um semáforo que tem um sinaleiro diferente, com voz. Ele tem leitor em braile, então a pessoa passa a mão e consegue ver as instruções, que vai dizer para apertar e segurar o botão por três segundos. Daí o semáforo começa a falar com a pessoa e diz ‘olhe, pode atravessar em segurança’, ele orienta a pessoa com dificuldade para que consiga atravessar com segurança”, explicou.
Segundo o secretário, a previsão é de que 20 novos semáforos deste tipo sejam instalados até o fim do ano na cidade.