Putin diz que destruição da barragem de Kakhovka foi 'selvageria' da Ucrânia, que culpa Moscou
Ambos lados trocam acusações sobre incidente, cuja causa e autoria ainda são incógnitas; presidente turco defende criação de comissão para apurar responsabilidades
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta quarta-feira (7) que a destruição da barragem de Kakhovka, em uma parte do sul da Ucrânia ocupada pelos russos, foi uma "selvageria" cometida por Kiev. Ambos lados do conflito trocam acusações sobre a responsabilidade pelo incidente, que deixa impactos ambientais e humanitários ainda desconhecidos e cuja causa também permanece uma incógnita.
"A selvageria destinada a destruir a central hidrelétrica de Kakhovka, na região de Kherson, gerou um desastre ambiental e humanitário de grande escala", disse Putin, segundo um comunicado emitido pelo Kremlin, durante uma conversa por telefone com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.
O presidente russo teria afirmando ainda que "os poderes em Kiev, com o auxílio de seus curadores ocidentais, estão fazendo uma aposta perigosa na escalada das hostilidades".
Durante a conversa, segundo comunicado emitido por Ancara, Erdogan teria dito para Putin que é necessário haver uma "investigação abrangente" sobre o incidente. De acordo com o turco, que adota uma posição de neutralidade e se postula como um possível mediador do conflito, é necessário "não haver margem para suspeitas".
De acordo com os turcos, Erdogan sugeriu a criação de uma comissão com representantes da Organização das Nações Unidas, além de especialistas russos e ucranianos. Não está claro qual foi a resposta de Putin à sugestão, que o mandatário recém-reeleito já havia feito em um ligação paralela para o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, também nesta quarta-feira.
No poder desde 2023, o presidente acusado de erodir o Estado de Direito na Turquia ocupa uma posição única na disputa. Erdogan está à frente do segundo maior Exército da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar encabeçada pelos americanos, mas tem um bom relacionamento com Putin e aumentou as relações comerciais com Moscou após a invasão.
Foi Ancara que mediou, ao lado da ONU, o acordo que permitiu a exportação de grãos pelo Mar Negro, liberando três portos ucranianos e milhões de toneladas armazenadas em silos e aguardando transporte. O pacto é frágil, mas solucionou um impasse que fez o preço das commodities dispararem no ano passado, aumentando a insegurança alimentar pelo planeta. Rússia e Ucrânia estão entre os maiores exportadores de alimentos e respondem por 30% do comércio global de trigo.
Os ucranianos questionam o argumento russo de que foi um ato de sabotagem, afirmando que os prejuízos à infraestrutura, cidades e produção agrícola são maciços e os ataques russos, repetidos. Dizem também que foi proposital para atrapalhar a aguardada contraofensiva de Kiev — a intensificação dos ataques no último fim de semana foi entendido por alguns analistas como um indício de que ela estava começando.
O alagamento dificulta o avanço dos soldados e a destruição na reserva acaba com a única ligação na área entre as duas margens do rio Dniéper. Segundo Roman Kostenko, presidente da Comissão de Defesa e Inteligência do Parlamento ucraniano, os russos queriam "mostrar que estão prontos para fazer qualquer coisa".
No início da tarde desta quarta (manhã no Brasil), o governo ucraniano disse que já evacuou mais de 2,7 mil pessoas de sua margem do rio. Na parte russa, a imprensa estatal fala de 1,3 mil evacuados. Na véspera, os ucranianos haviam dito que cerca de 40 mil pessoas precisaram ser retiradas de ambas margens — 23 mil da área sob controle do Kremlin e 17 mil, da região comandada pela Ucrânia.
A tragédia, que os ucranianos classificaram de "ecocídio", afetou o sistema de distribuição de água corrente, com as autoridades locais de Kherson afirmando que seis sistemas para a purificação de água foram inundados. De acordo com Zelensky, "centenas de milhares de pessoas ficaram sem acesso normal à água potável", e o governo aprovou com urgência um Orçamento emergencial para construir canais que possibilitem a normalização do cenário.
Segundo o Ministério da Agricultura ucraniano, o alagamento já inundou mais de mil km² de terras agrícolas, algo que pode comprometer a produção de grãos. A destruição do reservatório, alerta o governo ucraniano, também destruiu ao menos 31 sistemas de irrigação não apenas na região de Kherson, mas também nas vizinhas Dnieperpetrovsk e Zaporíjia, que permitiam a irrigação de 5 mil km². Com 30 metros de altura e 3,2 km de comprimento, a barragem fica rio abaixo da reserva que permite o resfriamento do complexo nuclear de Zaporíjia.
A segurança da maior usina atômica do continente, sob controle russo desde março do ano passado, é outro motivo perene de preocupação para a comunidade internacional. O Kremlin, a Energoatom, a operadora nuclear ucraniana, e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) dizem não haver riscos imediatos, contudo.
O Ministério do Interior ucraniano estima, contudo, que haja 20 mil pessoas sem luz no sul do país depois que a água inundou ao menos 129 subestações elétricas. A Presidência ucraniana divulgou ainda um vídeo que mostra uma variedade de peixes mortos, aparentemente em decorrência do vazamento do óleo lubrificante de motor armazenado na sala de máquinas da hidrelétrica de Kakhovka.
De acordo com os ucranianos, foi registrado na foz do Dniéper, no Mar Negro, ao menos 150 toneladas de óleo lubrificante. Os danos na central hidrelétrica, que antes da guerra gerava energia para mais de 3 milhões de pessoas, são irreversíveis — construir uma nova, estimam, demandaria mais de 930 milhões de euros (R$ 4,9 bilhões).
O prejuízo total estimados pela catástrofe, afirma Kiev, é de 50 bilhões de euros (R$ 263 bilhões). Especialistas, entretanto, dizem que é precipitado apontar dedos sem que haja mais evidências e que os danos são extensos para ambos lados. Para os russos, Kiev ordenou a destruição para cortar o fluxo de água em um canal que vai do Dniéper até a Península da Crimeia.
Os ucranianos haviam interrompido o envio quando a região foi anexada unilateralmente por Moscou em 2014, e uma das primeiras coisas que os russos fizeram quando a invasão começou no ano passado foi restaurá-lo. Outro argumento russo é que a destruição de Kahkovka irá facilitar a a contraofensiva ucraniana, apesar de não estar exatamente claro qual seria o custo-benefício disso.