Judiciário alertou Bolsonaro ao menos 31 vezes sobre punição por ataques ao sistema eleitoral
Ex-presidente já era investigado há um ano quando fez reunião com embaixadores e tinha visto aliado perder o mandato pelo mesmo motivo
Quando o então presidente Jair Bolsonaro reuniu-se com embaixadores para fazer ataques infundados ao sistema eleitoral, em julho do ano passado, ele já havia recebido diversos alertas de que poderia ser punido por esse tipo de declaração. O ex-titular do Palácio do Planalto já era investigado, há um ano, por afirmações semelhantes, e havia visto um aliado perder o mandato pelo mesmo motivo. Entre julho de 2021 e agosto de 2022, pouco depois do encontro, foram ao menos 31 recados — um a cada duas semanas, em média.
O levantamento, feito pelo Globo com base em declarações e decisões judiciais, demonstra que integrantes do Poder Judiciário, principalmente ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), tornaram público, em diversos momentos, que o entendimento da Justiça Eleitoral no pleito de 2022 consideraria a propagação de desinformação sobre as urnas eletrônicas como um ataque à democracia e, portanto, passível de punição.
Agora, a reunião feita com embaixadores, quando o ex-presidente reincidiu na disseminação de informações sem provas contra as eleições no Brasil, pode tornar Bolsonaro inelegível até 2030. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve concluir nesta semana o julgamento de uma ação em que o PDT acusa o ex-presidente de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Mesmo aliados do antigo ocupante do Planalto admitem que a condenação é quase inevitável.
Bolsonaro já levantava suspeitas sobre a Justiça Eleitoral desde 2018, mas os ataques subiram de patamar em julho de 2021, quando fez uma transmissão ao vivo para demonstrar que uma suposta fraude o impediu de ter sido eleito no 1º turno — ele admitiu na ocasião que não havia provas.
Bolsonaro passou então a ser investigado pelo TSE e foi incluído no inquérito das fake news, no Supremo. Depois, virou alvo de outra apuração no STF, por vazar investigação sigilosa da Polícia Federal — utilizada para colocar a lisura do sistema eleitoral em xeque.
A escalada de críticas tinha como pano de fundo a defesa da adoção de um comprovante impresso do voto. Em agosto, no entanto, a proposta foi rejeitada na Câmara dos Deputados. No mês seguinte, diante da ofensiva judicial, Bolsonaro disse que não iria cumprir mais ordens do ministro Alexandre de Moraes, do STF, em afronta à Constituição.
Ainda em 2021, o TSE começou a estabelecer uma jurisprudência para lidar com ataques às urnas. Em outubro, a Corte cassou o deputado estadual bolsonarista Fernando Francischini, que havia denunciado uma suposta fraude. Neste julgamento, os ministros estabeleceram o precedente de que ataques infundados ao sistema eleitoral configuram abuso de poder político e, por isso, podem levar à inelegibilidade ou cassação.
Em dezembro, os ministros aprovaram uma resolução com diversas regras para as eleições. Um dos artigos determina que “é vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”.
Jurisprudência
Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, o caso Francischini inaugurou a argumentação de que ataques às urnas a partir de fatos inverídicos levariam à cassação, reforçada quando o TSE fez a resolução incorporando esse entendimento. Desta forma, avaliam, Bolsonaro estava com “risco exposto e pagou para ver.”
O professor Emilio Peluso, da UFMG, conta que o TSE construiu ao longo dos últimos anos o entendimento de que iniciativas eram necessárias para conter a erosão institucional, inclusive consolidando a jurisprudência:
— Não se trata de uma ação ou uma decisão em uma lógica alheia à que o TSE vem adotando em relação à divulgação de informações falsas sobre as urnas. O sinal que coroa esse posicionamento é o julgamento da chapa Bolsonaro-Mourão, em que apesar de não cassar a chapa, o tribunal dá um sinal muito claro de que não iria tolerar fake news.
Em outubro de 2021, um ano antes das eleições, o então corregedor do Tribunal Superior Eleitoral, Luis Felipe Salomão, afirmou que “quem, sem provas, ataca esse sistema (urnas eletrônicas) está a atacar a democracia”. Em fevereiro de 2022, meses antes da reunião com os embaixadores, o ministro Edson Fachin, do STF, reforçou que desacreditar o sistema eleitoral sem provas ia além do mero discurso político e entrava no campo da tentativa de questionar a realização das eleições:
— Se houver ofensas injustificadas à Justiça Eleitoral, nós vamos responder e seremos mesmo implacáveis.
Em junho de 2022, um mês antes da reunião entre Bolsonaro e embaixadores, Moraes reiterou a posição da Corte:
— Quem se utilizar de fake news, quem falar de fraude nas urnas, terá seu registro cassado, independentemente de candidato a qual cargo for.
Freio na desinformação
Além de mensagens diretas sobre punições decorrentes de ataques à confiabilidade do processo eleitoral, o TSE impôs um freio sobre os mecanismos de disparos de mensagem em massa. Em 2021, a Corte arquivou dois pedidos de cassação de Bolsonaro, que alegavam que a sua campanha em 2018 utilizou o mecanismo. Os ministros consideraram que não houve provas de que o resultado foi afetado. Entretanto, definiram uma tese segundo a qual disparos em massa contendo desinformação podem configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação.
— Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado. As pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as eleições e a democracia — disse Moraes no julgamento.
A defesa de Bolsonaro disse que o encontro com diplomatas pelo qual ele está sendo julgado foi “uma singela reunião com embaixadores, de viés diplomático, institucional, bem antes das eleições e sem conexão com os fatos que habitam o entorno da política”:
— Tribunais julgam conforme o Direito posto e pressuposto. Fora disso, não é Justiça, mas justiçamento.