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Rússia tenta projetar normalidade após motim do Wagner, mas dúvidas permanecem

Putin e Shoigu fizeram aparições, mas silêncio sobre guerra e série de incertezas aumentam incógnitas sobre o que acontecerá nos próximos dias e semanas

Vladimir Putin, presidente russo - Mikhail Metzel / SPUTNIK / AFP

A Rússia tentou projetar normalidade nesta segunda-feira (26), após um dos finais de semana mais conturbados que o presidente Vladimir Putin precisou navegar em seus 23 anos no poder. As incertezas após o motim liderado no fim de semana por seu ex-amigo e líder do grupo paramilitar Wagner, Yevgeny Prigojin, continuam abundantes, no entanto, e levantam dúvidas sobre qual será o futuro da invasão na Ucrânia, já em seu 17º mês.

O prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, anunciou o cancelamento do regime antiterrorista imposto na capital, para onde os mercenários marchavam antes de o motim ser suspenso após conversas aparentemente mediadas pelo presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko. A Comissão Nacional Antiterrorismo, por sua vez, disse que a situação nacional é "estável", e as formaturas escolares previstas para esta semana poderão seguir em frente.

A tentativa de projetar ordem, contudo, não é por completo bem-sucedida. Em uma reunião ministerial transmitida pela televisão, o primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin, admitiu que o país enfrentou um "desafio à sua estabilidade", mas disse que a sociedade "precisa agir como uma unidade, um time, e manter a unidade de todas as forças, concentrando-se ao redor do presidente".

Putin, que não era visto desde sábado, quando fez um pronunciamento à nação acusando Prigojin de uma "punhalada pelas costas", ressurgiu em um vídeo. O Kremlin divulgou uma gravação do presidente direcionada ao Fórum Industrial Internacional de Jovens Engenheiros do Futuro, elogiando as empresas russas por garantirem "o funcionamento estável" da indústria nacional "apesar dos vários desafios externos".

Não se sabe, contudo, quando a declaração de Putin foi gravada, e o presidente não fala nada sobre o estado atual do país. Quem também reapareceu pela primeira vez desde o imbróglio foi o ministro da Defesa e principal algoz de Prigojin, Sergei Shoigu. Os vídeos com o ministro, contudo, nem áudio tem: ele apenas aparece observando algo de uma janela de avião e em uma reunião, sentado em uma mesa cheia de mapas e papéis.

As informações oficiais são de que Shoigu teria se reunido com soldados em um posto de comando envolvido na guerra, e que foi brifado por Yevgeny Nikiforov, líder das forças russas na Ucrânia, sobre a situação na linha de frente. Nada disso pôde ser confirmado.

Mas declarações do líder do Wagner — as primeiras desde que foi filmado no sábado no banco de trás de um carro deixando Rostov-no-Don, a cidade russa que seus combatentes conseguiram tomar — indicaram que sua insatisfação era mesmo com o ministro. O objetivo, afirmou em um áudio de 11 minutos compartilhado no Telegram, era expor a fraqueza das forças russas e criticar tentativas do governo de tentar limitar a operação dos paramilitares.

— Nossa decisão levou em conta dois fatores importantes: o primeiro era que não queríamos derramar sangue russo. O segundo era que marchávamos para demonstrar nosso protesto, não para derrubar o governo — disse ele. — O objetivo era evitar a destruição do Wagner e responsabilizar quem, com suas ações nada profissionais, fez erros enormes durante a operação militar especial — completou, usando o eufemismo do Kremlin para a invasão na Ucrânia e afirmando que, com a exceção de aeronaves abatidas, não causou grandes problemas.

O alvo da crítica é Shoigu e a alta cúpula militar, com quem Prigojin está há meses em pé de guerra. As tensões que se acentuaram em meio ao protagonismo que o Wagner assumiu na disputa pelo controle da cidade de Bakhmut, no leste. Apesar de pouco estratégica, a região ganhou forte simbolismo por ser palco da batalha mais longa e sangrenta do conflito russo-ucraniano.

O triunfo russo em maio foi a maior vitória do país de Putin neste ano, vitória na qual o Wagner teve papel fundamental — superava os adversários numericamente com as ondas de recrutamento nos presídios russos, adotava táticas que ignoravam o alto custo humano e era abastecido por armas pelo Kremlin. Prigojin estima ter perdido 20 mil homens apenas ali.

O destaque, contudo, gerou tensões no ministério russo, e críticas de que estava perdendo o monopólio da violência e enfraquecendo a autoridade estatal na nação é que dona do maior arsenal nuclear do mundo. Prigojin, por sua vez, demandava mais munições, homens e fazia críticas vorazes às ações de Shoigu e de seu órgão que buscassem pôr rédeas no Wagner, chegando a ameaçar publicamente deixar Bakhmut, por exemplo.

Até que ponto o grupo teria autonomia para agir sozinho também é uma dúvida: a tomada de Bakhmut, por exemplo, só ocorreu após soldados regulares russos protegerem suas posições. A colaboração, contudo, parece ter sido a última entre os dois lados.

A gota d'água, segundo informações da inteligência ocidental, foram as tentativas mais recentes do Ministério da Defesa para integrar os paramilitares às Forças Armadas regulares, reduzindo o poder de Prigojin. Neste mês, a Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo, aprovou uma lei destinada a devolver ao Estado o monopólio da violência: por ela, todos os combatentes, mobilizados, voluntários ou presidiários seriam obrigados a se submeter à hierarquia do Ministério da Defesa.

O exército do dirigente checheno Ramzan Kadirov, por exemplo, se submeteu completamente à medida, mas o Wagner não. A Duma também aprovou uma norma para contratar para lutar na linha de frente delinquentes que estejam cumprindo suas penas.

As duas medidas significam, na prática, que o Wagner não poderia mais formar um exército privado de mercenários, se aproveitando do terreno não regulamentado que Putin mantém para facilitar a ação de sujeitos — aliados ou úteis para ele — que não poderiam atuar dentro da Lei da Federação Russa. Era nesta zona cinza, fora da legalidade, que operava o grupo enquanto era útil às autoridades russas. Diante das tensões dos últimos meses, contudo, o cenário passaria a ser outro. De acordo com o Kremlin, os termos acordados para que o levante chegasse ao fim no sábado incluíam.
 

Os termos exatos que levaram o motim a ser suspenso no sábado também são pouco claros: Lukashenko disse que concederia abrigo a Prigojin, enquanto os russos teriam concordado em não processar os combatentes que participaram do levante. Os integrantes do Wagner que ficaram de fora, por sua vez, seriam incorporados ao Ministério da Defesa.

Isso significa que, ao menos na prática, o Wagner deixaria de existir em sua forma atual. O escritório do grupo em São Petersburgo, o principal da Rússia, contudo, disse nesta segunda-feira que funcionava normalmente. O chanceler Sergei Lavrov, por sua vez, disse que as atividades do grupo mercenário na África não seriam interrompidas.

Ex-empresário de catering (um tipo exclusivo de serviço de buffet), Prigojin diz ter fundado o grupo Wagner quando a Rússia tomou a Península da Crimeia em 2014 e da guerra subsequente. Desde então, enviou tropas para ajudar o Kremlin a fortalecer o regime sírio de Bashar al-Assad e construiu uma rede na África que se estende da Líbia ao Sudão, incluindo o Mali e a República Centro-Africana.

São várias as acusações de abusos e de exploração dos recursos naturais, mas o grupo tem um papel particularmente importante no Mali e na República Centro-Africana. Prigojin deslocou seus homens para a área em meio aos esforços russos para suprir vácuos deixados na região e disputar influência com chineses e americanos.

Para o Kremlin, a presença dos paramilitares era uma forma de exercer presença sem recorrer a botas russas no terreno. E, segundo Lavrov, os homens continuarão a trabalhar em tais países como instrutores.

O plano de Prigojin já havia sido detectado há alguns dias por autoridades ocidentais, mas não há evidências concretas até o momento de que houve ajuda ou conspiração. O próprio chanceler russo, Sergei Lavrov, disse nesta segunda que sua equipe "recebeu sinais" da embaixadora americana em Moscou, Lynne Tracy, de que Washington não teve envolvimento.

Lavrov afirmou, contudo, que a hipótese de envolvimento ocidental não está por completo descartada, e que as autoridades investigam tal possibilidade. Putin recebeu ligações de apoio de "vários amigos e aliados", mas ao ser indagado sobre como o motim afeta a já frágil relação da Rússia com países antagonistas, o chanceler disse:

— Francamente, não me importo, as relações com o Ocidente foram destruídas — afirmou em entrevista ao canal estatal Russia Today.

Outro ponto ainda incerto é o que tudo isso significará para a linha de frente da guerra da Ucrânia. Apesar de a Ucrânia ter anunciado nesta segunda-feira por meio de sua viceministra de Defesa, Ganna Maliar, a recuperação do vilarejo de Rivnopil, em Donetsk, o mais provável é que a linha de frente fique relativamente inalterada nas próximas semanas.

A inteligência ocidental mostra que soldados russos não chegaram a ser deslocados para lidar com a crise interna e, enquanto o motim acontecia no sábado, antes mesmo de o dia amanhecer, mais de 50 mísseis foram disparados contra o território ucraniano. A expectativa de Kiev é que o caos e a moral abalada entre os soldados russos dê ao menos alguma vantagem aos ucranianos, mas de momento parecer não haver muitas brechas a serem exploradas.