Cinema

Herói ou 'ladrão colonialista'? Novo Indiana Jones segue alheio a debate sobre artefatos

"A Relíquia do Destino", último longa da franquia, não acompanha tendência arqueológica atual, mas historiadores reconhecem legado do personagem para a disciplina

Harrison Ford será homenageado em sessão de - Reprodução/Lucasfilm

“Isso pertence a um museu”. A célebre frase de Indiana Jones em “A última cruzada” podia até ter o melhor dos intuitos em 1989, ano em que o terceiro filme da bilionária franquia em torno do herói foi lançado. Quase um quarto de século depois, porém, boas intenções talvez já não bastem no mundo em que está sendo lançado o novo título da saga, “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”.

É um momento delicado para homens como o Dr. Jones. Pelo menos fora do cinema, o que era antes tratado no imaginário cultural como “aventura” e “exploração” agora é visto por muitos como roubo. Instituições outrora irredutíveis sobre os seus acervos começaram a discutir com seriedade a repatriação de relíquias a seus países de origem.

Também nunca se repudiou tanto a figura do caçador de tesouros — uma atividade que, para os críticos, acabou sendo romantizada, ainda que com nuances, pelo personagem interpretado por Harrison Ford.

"Indiana Jones diz que o artefato pertence a um museu, mas que museu seria esse? Um museu americano?", ironiza a arqueóloga e influencer Márcia Jamille, de 35 anos, que tem um canal sobre o Egito Antigo no YouTube.

"No início da saga, ele é um arqueólogo que destrói ruínas para tomar artefatos dos povos locais. Mesmo quando, no filme seguinte (“O Templo da Perdição”), ele salva a relíquia para devolver à população é sob a ótica do 'salvador branco'. Isso bebe em um discurso colonialista, de que a população local é incapaz de cuidar de si. São questões que fizeram a franquia ser muito criticada."

Jamille diz que ela e colegas de profissão gostariam que a franquia acompanhasse os debates da arqueologia atual. Mas reconhece que é difícil — para o bem ou para o mal, Indiana sempre será “um homem de seu tempo”.

"Vi os outros filmes da série para uma cadeira da faculdade e não achei tudo isso", diz ela. "Mas estou empolgada para este último."

Após a primeira exibição do longa em maio, no Festival de Cannes, o personagem continuou atraindo a ira de uma crítica mais radical. Em sites do gênero pelo mundo, a nova aventura foi recebida com frases de efeito como “o principal ladrão colonial de Hollywood está de volta”. Só que a guerra cultural é uma via de mão dupla.

Do outro lado do espectro, um público mais conservador também choramingou nas redes sociais antes mesmo de ver o filme. O motivo? Uma tirada da personagem Helena Shaw (a atriz Phoebe Waller-Bridge, estreante na franquia) no trailer, que foi interpretada como uma crítica “woke” (movimento cunhado nos EUA ligado a militância em temas diversos) ao saque de relíquias.

“Você roubou (o artefato)!”, protesta Indiana Jones ao nazista Jürgen Voller. O vilão responde: “E depois você o roubou!” Até que Helena fecha a discussão: “E depois eu roubei. O nome disso é capitalismo”.

Ironicamente, Helena está longe de ser a figura ética e desconstruída que os conservadores pensaram. A tal fala está mais para uma observação niilista do que para uma palestrinha anticolonial. Na trama, ela inclusive rouba artefatos para vender no mercado ilegal. Isso não significa que o filme de James Mangold aprove a prática, só para deixar claro. Mas significa, por outro lado, que o debate sobre reparação arqueológica não é tema do longa, como temeram os que torceram o nariz para o trailer.

'Bem inclusivo’
Professor titular do Departamento de História da Unicamp, Pedro Paulo Funari nota que o verdadeiro assunto da nova aventura é, na verdade, bem velho. Apesar de a trama se passar em 1969, 25 anos após a Segunda Guerra, o foco continua sendo a luta contra os nazistas. Desta vez, Indiana Jones tem que fazer face ao uso dos sobreviventes nazistas pelos governos ocidentais, algo que realmente ocorreu no pós-Guerra.

"A devolução de bens culturais é um tema muito atual, mas Indy está em outra época", diz Funari.

"É mais o culto do herói na luta antinazi, algo bem inclusivo, Disney. O que é positivo. Há décadas se diz que Indiana Jones deve morrer. Mas isso não muda o fato de que ele continua a fascinar e que, de maneira indireta, a arqueologia tem se beneficiado de suas aventuras. Porque elas levam a arqueologia a um público mais amplo e acabam formando vocações."

Autor de romances de aventura como “Homens elegantes” e tradutor do clássico “As minas do Rei Salomão”, que é uma das inspirações para a criação de Indiana Jones, Samir Machado de Machado é uma dessas pessoas que foram profundamente impactadas pela franquia. Para ele, o que faz Jones tão cativante e distinto de outros heróis é a ironia pós-moderna de Steven Spielberg, seu criador, que reconhece o absurdo da ação sem perder uma sinceridade ingênua e a crença em seu personagem.

"Se os aventureiros da literatura inglesa do século XIX eram personagens feitos para acostumar os leitores ingleses com a ideia de estarem no comando do mundo, Indiana Jones atualizou esses heróis para o seu tempo, deslocando o poder colonial do Império Britânico para o norte-americano. Ao mesmo tempo, a graça dessas histórias de aventura está justamente em ter esses agentes de poderes coloniais contemplando, nas ruínas de antigas civilizações, um presságio do fim de seu próprios impérios."