"A Barbie acompanhou a vida real das mulheres", diz diretor da Mattel na América Latina
Miguel Ángel Torreblanca vê na boneca, que completou seis décadas de 'vida' e virou filme com estreia no fim deste mês, um símbolo do comprometimento da empresa com diversidade
Há 15 anos, quando começou na Cidade do México sua trajetória na Mattel, Miguel Ángel Torreblanca cuidava do marketing dos brinquedos “para as meninas”. E a Barbie era seu produto mais valioso.
Viu de perto a transformação da boneca, criada em 1959, que foi do esterótipo padronizado da dona de casa suburbana dos EUA pós-Segunda Guerra à representação mais exata do que a companhia americana diz julgar hoje ser sua vocação: abraçar valores como diversidade e igualdade.
Em entrevista ao Globo, o executivo que comanda a estratégia da Mattel na América Latina define que, se falasse, a Barbie do século XXI diria a crianças de todos os gêneros que elas podem não só ser quem sonharem, mas que já são incríveis.
“Barbie — o filme” celebra a estratégia que, conta Torreblanca, fez bem aos lucros e à imagem da Mattel. É, também, o primeiro multimilionário projeto de 13 longas baseados em produtos da empresa a serem lançados nos próximos anos. “Nos entendemos cada vez menos como uma fabricante de brinquedos e mais como uma elaboradora de conteúdo para crianças e seus pais”, diz, na conversa por videconferência da Cidade do México. Veja a seguir os principais trechos:
A Barbie que chega aos cinemas é bem diferente da boneca-padrão criada em 1959. Como se deu a transformação da marca?
As mudanças foram sendo feitas cuidadosamente a partir de nossa observação da reação dos consumidores, do desejo dos pais e das crianças. Nos últimos anos, pisamos no acelerador. Em 2018, fizemos, em parceria com uma revista especializada em educação nos EUA, uma pesquisa em larga escala com crianças. Descobrimos um descompasso entre meninas e meninos sobre suas aspirações futuras.
Como assim?
Quando completavam 6 anos, muitas meninas paravam de “sonhar grande”, de ser um dia presidente, astronauta, medalhista olímpica. Já os meninos seguiam com ideias grandiosas. Para implantar nossa estratégia de uma Barbie mais diversa e sem limite de ambições, foi crucial mergulhar naqueles dados. E pensar ser nossa obrigação reagir com nossos produtos, notadamente a Barbie, ao dream gap (diferença de sonho entre meninos e meninas). Nosso foco simbólico passou a ser o de inspirar meninas mundo afora a seguirem sonhando alto. Queremos que as crianças, desde cedo, acreditem que podem ser o que bem quiserem. Foi uma mudança gigantesca interna também, inclusive em como encaramos a Barbie
De que modo?
Perceber os brinquedos não só como objetos lúdicos. No caso da Barbie, mergulhamos na tradição de mulheres inspiradoras e as convidamos a participar daquele universo. Para estabelecer parcerias lembrávamos do processo de mudança, que vem de longe. Quando a “Barbie Astronauta” foi lançada, a maioria das mulheres ainda não tinha cartão de crédito. Convidamos crianças, de todos os tons de pele, a se enxergarem no universo da Barbie. Agimos pensando em representação. E multiplicamos suas possibilidades profissionais: hoje são mais de 200 carreiras da Barbie.
Os resultados foram positivos desde o começo?
Especialmente positivos. E não só financeiramente. Aumentou exponencialmente o número de pais que nos recomendam, que veem a Barbie não mais apenas como uma boneca, mas um produto que embute valores muito claros, que eles querem que seus filhos abracem desde cedo.
“Barbie — o filme”, no entanto, tem como idealizadora e protagonista Margot Robbie, que segue o padrão loira e magra. Não é um contrassenso?
O filme é resultado direto deste processo de mudanças. Ele aumentará a percepção de que a Mattel é uma empresa de produção de conteúdo. Desenvolver ideias para nos aproximarmos do nosso público-alvo é central em nossa estratégia. “Barbie” é o primeiro de 13 filmes já pensados para personagens nossos a serem lançados nos próximos anos. Não penso mais, no comando do marketing da Mattel para a América Latina, apenas em peças comerciais, mas em produtos narrativos de fôlego que transmitam determinadas ideias para pais e crianças. A representação da diversidade estará no filme, de maneiras até surpreendentes.
O CEO da Mattel, Richard Dickson, afirmou que vocês não são mais uma “fabricante de brinquedos” e sim uma “empresa de cultura pop”...
É isso! Não queremos mais nos conectar com o consumidor apenas com brinquedos de plástico. Ambicionamos fazer parte mais a fundo da rotina de crianças e pais. E “Barbie — o filme ” é central para isso. No Brasil, especialmente. A boneca foi a propriedade intelectual número 1 no universo de brinquedos no ano passado. Seu país segue há anos no top 5 mundial de vendas da Barbie. Aumentou o número de pessoas que usam camisetas com nomes de nossos personagens e o de colecionadores de nossos produtos. É cultura pop. Com o filme, fizemos parcerias com marcas, a começar pela Warner (que financiou a adaptação para o cinema, com orçamento estimado em US$ 100 milhões).
Barbie fará 65 anos em 2024. Vão aproveitar a efeméride para tratar de etarismo?
Ainda não posso anunciar as ações, mas homenagearemos figuras célebres contemporâneas da Barbie, de diferentes raças, culturas e realidades econômicas. Temos planos para brasileiras, estamos no processo de decisão. Elas serão conectadas a ideias, como nas mais recentes (a cientista Jaqueline de Jesus, a estrela pop Iza e a surfista Maya Gabeira).
Como a Mattel se prepara para enfrentar a reação de consumidores conservadores a inciativas como a da Barbie criada em parceria com a atriz trans Laverne Cox?
Já enfrentamos crises, inclusive na América Latina. Naturalmente, algumas pessoas não se conectarão com os valores que propomos. Tudo bem. Mas nossos números seguem positivos. Estamos confiantes que nosso caminho é o correto, e sem volta. A maioria dos pais e crianças é muito mais pró-Mattel hoje que no passado. Há uma mensagem clara, de inclusão, de esperança, de empoderar todas as crianças, independentemente de gênero. Temos enorme responsabilidade sobre a mensagem que levamos, inclusive em aspectos filosófico e educacional. A necessidade das mensagens que a Barbie de hoje, das lojas e do filme, oferecem, é muito nítida em nossos estudos.
E qual o segredo de a boneca seguir icônica com seis décadas de vida?
Justamente por ter sido um dos brinquedos que mudaram para sempre as regras do brincar. Não só alimentando a boneca, cozinhando na casa, mas alcançando outros patamares. A Barbie acompanhou a vida real das mulheres. E esse espelho é cada vez mais central para o futuro da Mattel.