Wagner devolveu "milhares de toneladas" de armas e munições, diz Rússia
Chefe da inteligência russa confirma contato com diretor da CIA para discutir motim do mês passado e "o que fazer com a Ucrânia"
O grupo mercenário Wagner, responsável pelo breve e fracassado levante contra o Kremlin no mês passado, entregou "milhares de toneladas de armas e munições" para as Forças Armadas da Rússia, disse o Ministério da Defesa da Rússia. O motim foi também assunto de uma ligação entre os chefes dos serviços secretos russo e ucraniano na última semana, em que debateram ainda "o que fazer com a Ucrânia".
De acordo com o Ministério da Defesa, foram entregues mais de 2 mil peças de equipamento, entre elas centenas de tanques, e mais de 2,5 mil toneladas de munição. O ministério também publicou um vídeo mostrando funcionários inspecionando equipamentos militares pesados que supostamente pertencem ao grupo paramilitar comandado por Yevgeny Prigojin.
A devolução indica que pelo menos algumas partes do acordo mediado pelo presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, para encerrar o motim dos dias 23 e 24 de junho, em meio a dúvidas sobre o futuro do Wagner e de Prigojin. De acordo com os termos do pacto, o Wagner interrompeu seu avanço em direção a Moscou, enquanto os russos se comprometeram a suspender qualquer caso criminal contra o mercenário-chefe.
Prigojin teria concordado também com o exílio na Bielorrússia, para onde os soldados do Wagner também poderiam ir caso não quisessem abandonar as armas ou assinarem contratos com o Exército, com o Estado incorporando o Wagner.
Os termos exatos do acordo e seu cumprimento, contudo, foram postos em xeque após relatos de que Prigojin tem livre tráfego pela Rússia, com o seu jatinho Legacy 600, da brasileira Embraer, fazendo vários voos domésticos em território russo desde o motim. Questionada, Moscou afirmou que não tem condições ou interesse de monitorar o vaivém do mercenário, um amigo antigo de Putin que fez fortuna neste início de século à frente do serviço de catering favorito do Kremlin.
As dúvidas foram acentuadas depois que Moscou confirmou que Putin encontrou-se com Prigojin e outros comandantes do Wagner cinco dias após o motim, mas pouco se sabe sobre o que foi debatido no encontro de 180 minutos. Segundo o Kremlin, o presidente teria oferecido uma "avaliação" das ações dos paramilitares na linha de frente e ouvido explicações dos comandantes "sobre o que aconteceu".
A reunião por si só, entretanto, foi surpreendente, após Lukashenko afirmar que havia precisado convencer Putin a não ordenar o assassinato de Prigojin.
Também foi revelado nesta quinta pelo chefe da inteligência internacional russa, Sergei Naryshkin, que ele e seu par na CIA, William Burns, tiveram uma ligação há cerca de uma semana. Em uma entrevista com a agência de notícias estatal Tass, Naryshkin afirmou que trataram "dos eventos de 24 de junho", mas que na maioria da conversa "ponderamos e discutimos o que fazer com a Ucrânia".
O levante de aproximadamente um dia representou um dos momentos mais sensíveis para Putin em seus 24 anos no poder, apesar de Prigojin afirmar a posteriori que sua meta não era "derrubar" o presidente, mas sim o alto comando militar. O imbróglio foi o ápice de meses de críticas sobre a conduta do Ministério da Defesa e, particularmente, do ministro Sergei Shoigu.
A imprensa americana já havia noticiado em 30 de junho que Burns havia contactado seu par russo para garantir que Washington não tinha relação com as ações do Wagner. A dupla mantém uma linha de contato desde o início da guerra, apesar de a relação bilateral entre EUA e Rússia estar em seu ponto mais baixo desde que a Guerra Fria terminou.
O Wagner ganhou protagonismo com seu papel-chave para a conquista de Bakhmut, onde a vitória russa é indissociável da atuação do grupo paramilitar. Seus homens superavam numericamente os adversários ucranianos com as ondas de recrutamento nos presídios russos. Na batalha abastecida por armas do Kremlin, lançava mão de táticas que ignoravam o alto custo humano. Prigojin estima ter perdido 20 mil homens apenas ali.
A situação, contudo, desatou tensões na alta cúpula militar russa, com críticas de perda do monopólio da violência e enfraquecimento da autoridade estatal na nação que é dona do maior arsenal nuclear do mundo. Prigojin, por sua vez, demandava mais munições e homens, afirmando que Moscou sofria devido a estratégias que considerava equivocadas do alto comando militar.
A gota d'água, segundo informações da inteligência ocidental, foram as tentativas mais recentes do Ministério da Defesa de integrar os paramilitares às Forças Armadas regulares, reduzindo o poder de Prigojin. Em junho, a Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo, aprovou uma lei destinada a devolver ao Estado o monopólio da violência: por ela, todos os combatentes, mobilizados, voluntários ou presidiários seriam obrigados a se submeter à hierarquia do Ministério da Defesa.
A Duma também aprovou uma norma para contratar para lutar na linha de frente delinquentes que estejam cumprindo suas penas. Segundo Prigojin, subscrever aos termos do governo, na prática, teria interrompido as atividades do Wagner desde 1º de julho.
Os combatentes, disse o paramilitar, tinham planejado entregar suas armas pesadas ao Exército russo, mas foram atacados na noite de sexta-feira na região onde se concentravam, em Rostov-no-Don, matando mais de duas dúzias de soldados de Wagner — uma alegação para a qual não há evidências independentes. Agora, contudo, parecem estar de fato devolvendo ao menos parte de suas armas.