Guerra

Conheça as histórias das crianças ucranianas com câncer que enfrentam uma batalha a mais na guerra

Dramas pessoais revelam que 15 meses de invasão russa agravou situação de pacientes pediátricos com câncer, mas também gerou avanços no tratamento oncológico na Ucrânia

Sasha Batanov em tratamento por leucemia na instituição de caridade Tabletochki, no Hospital Infantil Ohmatdyt em Kiev, Ucrânia - Brendan Hoffman/Reprodução The New York Times

Mykola, de 18 meses, agarrou o dedo de sua mãe enquanto caminhava pelo corredor do hospital em Kiev, suas pernas ainda instáveis, ansiosas para acompanhar seu desejo de andar. Toda sua curta vida foi passada no hospital. Seu câncer foi diagnosticado no nascimento, apenas um mês antes de as forças russas invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022.

— É como se você tivesse duas guerras pra lutar — disse a mãe, Anna Kolesnikova. — Duas guerras em sua vida: uma pra salvar a vida de seu filho e a outra pelo seu país.

Por toda Ucrânia, famílias de crianças com câncer enfrentam a dupla agonia de uma doença com risco de vida e um país engolido pela guerra. Para muitos, a invasão russa significou o deslocamento forçado de suas casas, o medo de ataques aéreos e a separação de entes queridos, incluindo familiares servindo nas Forças Armadas.

Mas, apesar das novas dificuldades, o conflito também contribuiu para o desenvolvimento da oncologia pediátrica ucraniana, contam os especialistas, graças à maior cooperação com parceiros internacionais neste momento de crise.

Ainda assim, para famílias como os Kolesnikovs, a guerra acentuou dor já presente.

Mykola nasceu em janeiro de 2022 com um tumor maligno que distorceu seu rosto e pescoço e o deixou com apenas um olho funcionando. Ele foi enviado imediatamente ao Hospital Infantil Ohmatdyt em Kiev para quimioterapia e cirurgia. Ele e sua mãe passaram semanas abrigados no porão do hospital para que Mykola pudesse continuar o tratamento, mesmo quando Kiev foi atacada.

Sua cidade natal, na região de Kherson, no Sul da Ucrânia, foi tomada pelas forças russas e permanece sob ocupação. Kolesnikova, 32 anos, permaneceu em Kiev com Mykola, enquanto seu marido, seu filho mais velho e seus pais vivem do outro lado da linha de frente, que parece, neste momento, o outro lado do mundo.

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— Estou separada da minha família — disse ela. — E estou constantemente preocupada com a vida do meu filho, a dos meus pais , marido e do meu outro filho.

Ela temeu o pior quando a barragem de Nova Kakhovka foi destruída no mês passado, inundando parte da região de Kherson, mas sua família saiu ilesa.

No início da guerra, muitas crianças com câncer foram enviadas às pressas para outras nações europeias ou lugares mais distantes no lado ocidental do país. As evacuações, coordenadas pela organização Safer Ukraine em parceria com a St. Jude Global, garantiram que os tratamentos continuassem ininterruptos.

— Nossa atenção foi enorme para salvar esse grupo grande e vulnerável de crianças — disse Roman Kizyma, oncologista pediátrico e diretor interino do Centro Médico Especializado para Crianças da Ucrânia Ocidental.

Capacitação e treinamento internos
Desde então, a abordagem da Ucrânia para o tratamento do câncer pediátrico evoluiu, disse Kizyma, 39 anos. Desde o verão passado (Hemisfério Norte), o foco tem sido na capacitação de especialistas dentro do país. Enquanto algumas crianças com necessidades complexas ainda são enviadas para o exterior, a maioria já permanece na Ucrânia.

Com a nova coordenação com parceiros internacionais, os vínculos crescentes com hospitais europeus, as novas oportunidades de treinamento e o aumento de especialistas no país, Kizyma vê a oncologia pediátrica fortalecida na Ucrânia.

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— Penso que o nível cresceu, e talvez fique ainda mais alto — fruto da guerra, disse, destacando tratamentos mais especializados nos hospitais regionais desde o início do conflito.

Muitos cânceres infantis são tratáveis, mas as perspectivas dependem de onde a criança recebe os cuidados. Nos países mais ricos, com maior acesso a tratamentos e medicamentos, mais de 80% das crianças com câncer sobrevivem pelo menos cinco anos. Em países pobres e de renda média, as taxas podem ser inferiores a 30%, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Yulia Nogovitsyna, diretora do programa da Tabletochki, a principal instituição de caridade pediátrica ucraniana, estima que cerca de 60% das crianças no país são tratadas com sucesso.

— Ainda há uma lacuna entre a Ucrânia e os países de alta renda, e queremos mudar isso — disse.

Atrasos no diagnóstico
Para algumas crianças, a guerra também atrasou o diagnóstico e o tratamento.

Sasha Batanov, 12, estava em um hospital em Kharkiv, acamado com fortes dores nas costas, em fevereiro de 2022, quando a invasão russa começou e o hospital foi evacuado. Ele foi levado para casa e abrigado lá por semanas.

— Estava tentando acalmá-lo — disse sua mãe, Nataliia Batanova. — Embora eu tenha percebido que algo sério estava acontecendo.

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Eles ainda não sabiam, mas Sasha tinha leucemia. Se ele pudesse ter ficado no hospital, teria sido descoberto antes, disse sua mãe.

Só em julho o câncer foi diagnosticado e ele foi transferido para Kiev para iniciar a quimioterapia. Sasha também precisava de um transplante de medula óssea, que recebeu em abril.

Por enquanto, Sasha, sua mãe e seu irmão estão morando em um apartamento em Kiev enquanto ele continua o tratamento. Seu pai é um soldado, lutando no Leste do país, aumentando seus medos. Mas Batanova tem esperança.

— Estamos felizes por termos esta vida hoje, neste exato momento — disse ela. — Isso é o que a guerra e esta vida nos ensinaram.

Para crianças com câncer e suas famílias, pode ser uma luta encontrar até mesmo um pequeno pedaço de normalidade à medida que as crises pessoais e nacionais convergem.

'Parecia o fim do mundo'
Viktoria e Serhiy Yamborko esperavam que um acampamento de verão nas montanhas dos Cárpatos, no Oeste da Ucrânia, no início deste mês, lhes desse tempo para criar memórias felizes com sua filha de cinco anos, Varvara, cujo câncer foi diagnosticado no ano passado.

Eles viajaram para lá com a Tabletochki, que administra acampamentos para crianças e suas famílias nadarem, caminharem e relaxarem.

Com uma excitação nervosa, Varvara, usando um pequeno gorro de montaria, foi colocada no lombo de um cavalo para um passeio de trilha, as florestas de pinheiros estendendo-se no vale abaixo. Serhiy Yamborko, 50 anos, gravou um vídeo em seu telefone enquanto Viktoria Yamborko, 38, segurava o braço da filha.

— Esses momentos de reabilitação, embora sejam poucos, ajudam você a seguir em frente — disse Serhiy Yamborko, que disse também ter confiado em sua profunda fé ortodoxa para sustentá-los.

A família é originária de Kherson, mas estava em Kiev no início da guerra e fugiu para a relativa segurança do Oeste da Ucrânia por alguns meses. Foi quando perceberam mudanças em Varvara, que fraturou três ossos em pouco tempo e ficou cada vez mais doente.

Quando voltaram a Kiev, receberam o diagnóstico que temiam.

— Parecia o fim do mundo — disse Viktoria Yamborko, descrevendo sua dificuldade em lidar com a notícia, ao mesmo tempo em que temia pela família que ainda mora em Kherson.

Varvara suportou meses de quimioterapia intensiva e outros tratamentos e recebeu alta do hospital neste verão. Ela continua a receber atendimento ambulatorial, mas sua energia e espírito determinado voltaram, disseram seus pais.

Com um boné de beisebol lilás cobrindo o cabelo curto que começou a crescer, Varvara disse animadamente que sua parte favorita do acampamento era passar o tempo com as outras crianças.

— É ótimo estar perto de outros pais, você não precisa explicar tudo — disse Viktoria. — Aqui a gente se entende sem palavras.

Mesmo para crianças em remissão, como Anna Viunikova, a guerra complicou o cuidado contínuo. Anna, de 10 anos, recebeu um transplante de medula óssea e quimioterapia para leucemia antes da guerra, e seu cabelo castanho-avermelhado voltou a crescer.

Mas a guerra acabou com as tentativas de sua família de retomar a vida normal. Os russos ocuparam sua aldeia na região de Kherson. Sua mãe temia por sua segurança e pela capacidade de Anna de fazer exames regulares, então, no verão passado, Anna e seus pais fugiram para Kiev.

— Eu quero que tudo fique bem — disse Anna. — Para que eu possa sentar e comer melancia. Poder andar e andar de bicicleta, como antes. Mas não vai ser como era.