Entenda a reforma judicial que causa os maiores protestos da História de Israel
Projeto do governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu teve uma peça-chave aprovada nesta segunda-feira, despertando processos maciços
Os protestos que há 29 semanas tomam as ruas de Israel tiveram momentos críticos nesta segunda após o Parlamento do país aprovar nesta segunda-feira uma peça-chave da controversa reforma judicial que críticos afirmam ser uma ameça ao Estado de Direito. Com o governo mais à direita de sua História, comandando pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, a nação do Oriente Médio atravessa uma grave crise política que desperta até mesmo raro repúdio público dos aliados na Casa Branca.
O Parlamento israelense aprovou nesta segunda uma parte importante da reforma judicial apresentada por Netanyahu, à frente do governo mais conservador da História do país;
A medida, na prática, derrubou a capacidade da Suprema Corte de barrar medidas do governo, indicações de ministros ou nomeações para cargos públicos que não sejam "razoáveis";
Milhares de pessoas foram às ruas em protesto, no novo capítulo da maior onda de manifestações da História do país;
A oposição anunciou que contestará a iniciativa na Suprema Corte, mas a viabilidade do questionamento é uma incógnita;
Outros pontos da reforma incluem mudanças na nomeação de juízes e na capacidade do Legislativo de derrubar decisões da Suprema Corte.
O que foi aprovado nesta segunda?
A Knesset, o Parlamento do país, aprovou nesta segunda por 64 votos a zero, após a oposição abandonar a plenária em repúdio, uma medida que derrubou a capacidade da Suprema Corte de barrar medidas do governo, indicações de ministros ou nomeações para cargos públicos que não sejam "razoáveis". O voto foi marcado por gritos de "vergonha" e negociações que duraram até os minutos finais, com Netanyahu — que horas antes teve alta do hospital, onde pernoitou depois que pôs um marca-passo — fazendo vários telefonemas da plenária.
Como os os governistas têm a maioria na Knesset, o Parlamento israelense, e a Suprema Corte exerce um papel importante de freios e contrapesos. Quando o Estado de Israel foi fundado, em 1948, a intenção era que uma Carta Magna fosse redigida. Isso, entretanto, nunca aconteceu.
Assim, o país tem dois tipos de leis, as normais e as básicas, que muitos entendem como uma Constituição, e regulam as eleições, a composição do Parlamento e as Forças Armadas, por exemplo. Como não há uma Carta Magna per se, no entanto, não há como tomar decisões judiciais embasando-se na constitucionalidade, mas sim nos "motivos razoáveis".
Uma decisão que "não é razoável" é algo desproporcionalmente focado em interesses políticos, mas que vá na contramão dos interesses do povo. Na prática, isso significaria aumentar os poderes do Executivo e permitir que o governo tome medidas sem maiores interferências judiciais — o que pode inclusive beneficiar um premier que, em 2020, virou réu por três casos de corrupção, tornando-se o primeiro chefe de Estado na ativa julgado na História de Israel.
A medida recém-adotada já havia sido aprovada em primeira leitura no último dia 11, e a oposição tentou sem sucesso barrá-la apresentando cerca de 28 mil emendas na Comissão de Constituição, Lei e Justiça.
Como a oposição reagiu?
O Movimento por um Governo de Qualidade, grupo da sociedade civil, anunciou imediatamente que iria desafiar a nova lei na Suprema Corte, enquanto o líder da oposição, Yair Lapid, disse que "tão em breve quanto amanhã de manhã, vamos apresentar um pedido na Suprema Corte contra a revogação do caráter democrático do Estado de Israel e a natureza antidemocrática e predatória" das negociações.
— Eles estão celebrando o momento que eles jogaram tudo que nos conecta no lixo — disse Lapid, afirmando também que "caminhamos em direção ao desastre". — Não temos primeiro-ministro. Netanyahu se tornou o fantoche dos extremistas messiânicos.
E as ruas?
Desde que o projeto foi apresentado em janeiro há protestos maciços que levam centenas de milhares à ruas do país, na maior onda de manifestações da História israelense.
Antes mesmo da votação, a polícia lançou mão de jatos d'água e socos após manifestantes conseguirem romper a barreira de segurança da Knesset, em Jerusalém, e se aproximar do edifício, com cantos de "nunca vamos desistir" e "democracia ou rebelião". Entre os críticos está Nadav Argaman, ex-chefe do Shin Bet, agência de segurança doméstica do país, afirmando que Netanyahu "perdeu o povo".
Mais de 150 líderes empresarias não abriram hoje as portas de seus negócios em repúdio ao projeto. No fim de semana, 10 mil reservistas anunciaram que vão parar de servir, levantando temores de que a capacidade de preparação das Forças Armadas esteja prejudicada. Nas últimas horas, mais centenas juntaram-se a eles.
Em Jerusalém, até as 14h (8h no Brasil), ao menos 19 manifestantes já tinham sido presos, e há protestos em diversos pontos da cidade, como o viaduto Begin. Pela primeira vez desde que os protestos começaram em janeiro, os manifestantes usaram skunk water, um líquido com mau odor que disparam para tentar controlar multidões.
Em Haifa, há centenas de pessoas nas ruas e em Tel Aviv, milhares. No centro do país, um carro avançou contra os manifestantes, deixando algumas pessoas levemente feridas.
A Histadrut, a maior central sindical do país, discute uma nova greve geral para os próximos dias, enquanto a Associação Médica de Israel já anunciou uma paralisação na terça. Uma greve geral chegou a ser convocada em março, após o ministro da Defesa, Yoav Galant, criticar a medida e ser demitido. Netanyahu voltou atrás com a decisão e decidiu mantê-lo no cargo.
A medida pode ser revertida pela Suprema Corte?
Não está claro. Como os os governistas têm a maioria na Knesset, o Parlamento israelense, a Suprema Corte exerce um papel importante de freios e contrapesos. Quando o Estado de Israel foi fundado, em 1948, a intenção era que uma Carta Magna fosse redigida, o que nunca aconteceu.
Assim, o país tem dois tipos de leis, as normais e as básicas, que muitos entendem como uma Constituição, e regulam as eleições, a composição do Parlamento e as Forças Armadas, por exemplo. Como não há uma Carta Magna, no entanto, não há como tomar decisões judiciais embasando-se na constitucionalidade, mas sim nos "motivos razoáveis".
Uma decisão que "não é razoável" é algo desproporcionalmente focado em interesses políticos, mas que vá na contramão dos interesses do povo. Isso significaria aumentar os poderes do Executivo e permitir que o governo tome medidas sem maiores interferências judiciais — o que pode inclusive beneficiar um premier que, em 2020, virou réu por três casos de corrupção, tornando-se o primeiro chefe de Estado na ativa julgado na História de Israel.
Segundo o Haaretz, a Suprema Corte nunca invalidou nenhuma lei básica como a aprovada nesta segunda. Especialistas em direito constitucional afirmam que há embasamento legal para tal manobra, contudo, caso considerem que a Knesset abusou de seu poder ao implementar uma ação que transgrida as "normas constitucionais", mas isto parece improvável devido ao ineditismo.
Outra possibilidade seria se a oposição aprovasse uma medida chamada "emenda constitucional inconstitucional", argumentando que a razoabilidade viola a separação de Poderes. Uma terceira hipótese é a reversão por um novo Legislativo, o que demandaria novas eleições.
Ela é a reforma inteira?
Não, é apenas a primeira parte. A Knesset entra em recesso no dia 30 de julho, mas a retomada deve trazer também o debate de outros pontos da reforma, como reverter o poder parlamentar de derrubar decisões colegiadas ou não da Suprema Corte com uma maioria simples de 61 votos (a Casa tem 120 assentos), algo que Netanyahu prometeu não levar a voto.
Outro aspecto é uma mudança na composição da comissão responsável por selecionar juízes, que hoje tem nove membros, e igual representação de magistrados, políticos e advogados. A proposta em debate alteraria o equilíbrio de poder, dando ao governo do momento controle sobre as nomeações.
Qual é a repercussão internacional?
A Casa Branca, principal aliada internacional dos israelenses, emitiu um comunicado afirmando ser "lamentável" que a coalizão israelense tenha aprovado a primeira parte da reforma. Segundo ela, os "EUA continuarão a apoiar os esforços do presidente [de Israel, Isaac] Herzog e outros líderes israelenses que buscam construir um consenso maior por diálogo político".
No domingo, o presidente americano Joe Biden disse ao site Axios que, "da perspectiva dos amigos de Israel nos EUA, parece que a atual proposta de reforma judicial está mais polarizante, e não menos".
O que dizem governo e oposição?
Se a oposição e especialistas dizem que a reforma mina a separação dos Poderes e que as salvaguardas da Suprema Corte são alguns dos poucos freios e contrapesos funcionais, o governo e seus aliados ultranacionalistas e ultraortodoxos argumentam que o Judiciário concedeu a si mesmo maior autoridade ao longo dos anos e que a Suprema Corte não é representativa da sociedade israelense.
— A lei que aprovamos hoje é importante para a democracia, mas é apenas o início. Para um Estado de Israel mais judeu e democrático, devemos aprovar o resto da reforma, primeiramente as mudanças na comissão de nomeações judiciais e o poder dos promotores — disse o ministro de Segurança Nacional, o ultraconservador Itamar Ben-Gvir, afirmando que "Israel será um pouco mais democrática, um pouco mais judia".
Como as mudanças afetariam Netanyahu?
O premier é réu em três casos que o acusam de abuso dos poderes para conceder favores a executivos ricos em troca de presentes, por exemplo. A procuradora-geral do país, Gali Baharav-Miara, enviou uma carta a Netanyahu ordenando-o a manter distância da reforma judicial devido ao conflito de interesses evidente. O premier, contudo, afirmou que a diretriz é "inaceitável" e que seus imbróglios com a lei são paralelos às reformas.
O ministro da Justiça Yariv Levin, contudo, disse em janeiro que as acusações contra o primeiro-ministro "o convenceram" de que é necessário "corrigir" o sistema.