Léa Garcia falou sobre preconceito em entrevista recente: "Vergonha não é ser escravo", confira
Artista, indicada ao prêmio de melhor intepretação em Cannes, quase desistiu de ser atriz por causa de discriminação e teve trajetória de luta contra estereótipos
Em entrevista recente ao Globo, a atriz Léa Garcia, que morreu nesta terça-feira (15), aos 90 anos, falou sobre a luta contra o preconceito ao longo de sua trajetória de mais de 70 anos de carreira. Ela, que foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes de 1959 por “Orfeu Negro” (vencedor do Oscar de filme estrangeiro) quase desistiu de ser atriz por causa da discriminação.
"Enfrentei discriminação terrível e cruel não só porque era atriz, mas mulher negra. Quis não ser mais nada. Peguei uma mala de fotografias e queimei. Minha avó consegui salvar algumas... Tudo por causa desse preconceito velado que a gente nem podia denunciar por não ter nada palpável. É um olhar, uma pessoa se retrai diante da sua presença. Tive que ter muito altruísmo junto a atores, produtores e empresas, e ter garra para superar tratamentos que recebi", contou ela.
Atuando em teatro, TV e cinema, Léa consolidou uma carreira de papéis marcantes. Com mais de 209 filmes no currículo, tornou-se uma das maiores estrelas do cinema brasileiro. Foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes de 1959 por “Orfeu Negro”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro. Tornou-se referência, admirada pela qualidade de suas atuações.
Perguntada sobre que conselhos ela daria a atrizes como Taís Araújo e Camila Pitanga, que sempre a citam como figura fundamental para a abertura dos caminhos, ela ensinou:
"Elas não precisam de conselho, estão sabendo muito bem o que fazer. Devem dar continuidade ao espaço do negro no audiovisual, conquistado por mim, Ruth de Souza e todas que vieram antes. Ocupar espaço de forma digna e justa até atingirmos uma forma universal. Isso poderá acontecer não só com o nosso conhecimento, posições e reivindicações, mas com o outro lado. Quem precisa aprender é o lado de lá, porque vergonha não é ter passado por uma condição de escravo, mas, sim, de colonizador."
No ano passado, aos 89 anos, a atriz precisou tomar coragem para interpretar uma de suas três personagens na peça "A vida não é justa". Diante do convite para viver a velhinha que comete adultério virtual paquerando na Internet sob a alcunha de Molhadinha25, a primeira reação da atriz foi: "Sou uma senhora, não vou fazer isso". Depois de refletir, no entanto, se deu conta de que poderia estar presa aos próprios preconceitos.
"Ultimamente, tinha virado atriz de dois personagens só. Me chamavam para fazer mãe preta ou mãe de santo. Está sendo agradável sair desse olhar estereotipado, que coloca a mulher negra idosa num determinado tipo de representação. Essas, agora, são simplesmente mulheres."
Léa lutou contra estereótipos a vida toda. E nunca conseguiu se ver livre por completo. Ao longo da carreira, fez mais papéis de personagens em posição subalterna do que qualquer outra coisa. Um sem número de empregadas domésticas e escravizadas. Cada vez que viveu uma dessas últimas, aliás, encarou um trauma de infância.
Léa tinha “horror” de ficar descalça. Jamais colocava os pés em contato com o chão, a não ser na praia. Sempre que gravava uma cena, deixava os chinelos bem pertinho. Assim que terminava, corria para calçá-los. A origem da trava foi uma surra que levou da mãe quando menina.
"A gente morava na Praça São Salvador, e resolvi nadar no chafariz. Minha mãe me viu sem sapatos da janela, mandou me chamar e disse: "Antes de te bater, vou dizer uma coisa: 'Não fiquei descalça porque você não é uma negrinha, é minha filha e te uso para ganhar dinheiro'". Apanhei muito. Nunca mais consegui andar com o pé no chão de novo.