SAÚDE

Paixão era considerada doença na Idade Média, e médico de reis indicava os sintomas e tratamentos

Visto de forma negativa, era comum associar sentimento ao desconforto físico e problemas de raciocínio; entre as terapias estão: dormir, conversar, passear ou ter relações sexuais

Paixão era considerada doença na Idade Média, e médico de reis indicava sintomas e tratamentos - Quadro do pintor Ford Madox Brown

Ao longo da história, o amor aparece como um dos motores que impulsionou a humanidade — mas também costuma ser considerado um mistério, e passou por transformações. Na Idade Média, por exemplo, este sentimento não era concebido como é hoje: ao invés de ser algo doce ou romântico, ele era visto como algo perigoso, que desviava as pessoas de seus deveres e responsabilidades.

Este aspecto é evidenciado pelas histórias de época, que ilustram como os apaixonados se rendiam ao desejo e provocavam tragédias épicas, além de dilemas morais. Desde Romeu e Julieta até Tristão e Isolda, a maioria das lendas medievais imortalizou a intensidade dos sentimentos amorosos, mas também trouxe à tona as consequências devastadoras de se entregar sem reservas ao amor passional.

Socialmente, acreditava-se que aqueles que se deixavam levar por seus impulsos amorosos eram vítimas de uma aflição da alma, chamada de “amor louco” ou “heroico”. Acreditava-se que os amantes eram possuídos por uma força sobrenatural que os privava de sua racionalidade e os levava a uma emoção desenfreada que desafiava as normas sociais estabelecidas. Como resultado, a paixão era vista como algo a ser condenado e temido, pois ameaçava a estabilidade e a ordem.

De acordo com um escrito da Universidade Autônoma de Barcelona, Arnau de Vilanova, renomado médico de reis e papas da Idade Média, entendia o amor heróico — nome dado na medicina medieval à doença da paixão amorosa — como uma deformação de eros, o “amor-paixão” em grego. Os escritos de Arnau indicam que, naquela época, o apaixonado se submetia à pessoa amada como um vassalo faria com o seu senhor.
 

Ao contrário de outros autores ou personalidades relevantes da época, Vilanova se destacava por considerar o amor heroico como um sintoma, mais do que uma doença. Segundo ele, a paixão era consequência de um erro de julgamento. Este equívoco provocava um “calor excessivo” gerado pela antecipação do prazer que o indivíduo sentia em relação ao objeto de seu amor. Para o médico, os sintomas da paixão amorosa eram:

Exaustão;

Enfraquecimento do corpo;

Palidez;

Insônia;

Falta de apetite;

Tristeza na ausência da pessoa amada;

Alegria na proximidade dela.

Em seu tratado, Arnau de Vilanova informava, também, que o tratamento médico consistia em: mostrar os defeitos da pessoa amada ou distrair-se do pensamento com atividades agradáveis, como dormir, conversar com amigos, passear pela natureza, ouvir música ou ter relações sexuais com jovens e, acima de tudo, viajar — sendo quanto mais longe, melhor.

A "doença dos sentidos"
Além disso, a maioria dos Padres da Igreja se baseava em teorias da paixão propostas pelos filósofos e médicos gregos e latinos. Eles também consideravam o amor apaixonado como algo desordenado e perigoso, capaz de levar à loucura e desviar o indivíduo da virtude, classificando assim a paixão como uma “doença dos sentidos” que corrompia a alma.

Conforme indicado no ensaio científico “O ‘amor que dizem heróico’ ou aegritudo amoris”, de Maria Eugenia Lacarra Lanz (ou Eukene Lacarra Lanz), crítica literária e medievalista, o texto que teve maior influência no conhecimento da “doença de amor” foi o “Viaticum”, de Constantino, o Africano — figura proeminente da Escola de Salerno (a primeira escola médica medieval) do século XI.

O texto, que foi amplamente difundido, servia como um manual dirigido a viajantes sem acesso a cuidados médicos. Nele, havia um capítulo sobre esta “doença”. Constantino afirmava que o eros era uma enfermidade cerebral relacionada ao desejo, e que causava uma alteração nos pensamentos. Assim como Galeno — médico, cirurgião e filósofo grego no Império Romano —, ele a localizava no cérebro, e não no coração.

Para ele, a falta de controle emocional era atribuída às tristezas e choros dos apaixonados. Além disso, a obsessão pelo amado dificultava a compreensão de tudo o que não estava relacionado ao amor e àquela pessoa desejada. “O amor romântico/paixão é uma motivação ou um estado orientado a um objetivo que leva a emoções ou sensações como euforia ou ansiedade em quem tem esse desejo”, conclui um estudo publicado no Journal of Neurophysiology.

A pesquisa reconhece a evidência científica sobre a neurociência do amor, que indica que neurotransmissores como a dopamina, adrenalina e serotonina no cérebro causam sintomas físicos experimentados quando se está apaixonado. Segundo Sandra Magirena, médica e sexóloga clínica, o passar do tempo e o surgimento de movimentos sociais questionaram visões de mundo dos antepassados.

— Os laços amorosos foram evoluindo e se modificando ao longo da história da humanidade, dependendo muito dos contextos socioculturais. É comum confundir o que é o amor como um sentimento e o que é a sexualidade. Daí surgem os equívocos, que é o que acredito ter ocorrido na época medieval — afirmou ela, ressaltando que na época havia uma dominação do masculino e, portanto, a noção do prazer, ligada ao feminino, não existia ou tinha aprovação.

A sexóloga destacou, também, que “não se deve confundir amor com emoções tóxicas”, pois estas últimas desencadeiam dependência emocional e relacionamentos dependentes. Para ela, o amor “puro” é “a emoção mais perfeita que os humanos têm, e é a única que pode ser livremente manifestada e expressa com toda a sua intensidade”: “Não é doentio, pelo contrário. O amor cura”.