SÃO PAULO

"É como se um cérebro invadisse o outro", diz médico de cirurgia de separação de gêmeas siamesas

Procedimento durou 27 horas e usou imagens 3D e realidade virtual para mapear cabeças das irmãs Allana e Mariah, de 2 anos e oito meses

Allana e Mariah, de 2 anos e oito meses, que foram separadas na quarta cirurgia, que durou cerca de 27 horas - Reprodução HCFMRP-USP

Após cerca de 27 horas, terminou na manhã deste domingo (20) a última cirurgia das irmãs siamesas Allana e Mariah, de 2 anos e oito meses. Nesta quarta etapa, as meninas foram finalmente separadas. Foi o segundo caso de separação de siamesas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP-USP).

No Brasil, a primeira separação de siamesas craniópagas foi a das gêmeas Maria Ysadora e Maria Ysabelle, finalizada em outubro de 2018, após cinco procedimentos cirúrgicos, pela mesma equipe. O primeiro caso foi acompanhado pelo médico norte-americano James Goodrich, referência em intervenções em gêmeos siameses, que faleceu por Covid-19 em 2020.

As irmãs Allana e Mariah nasceram em Ribeirão Preto no dia 9 de dezembro de 2020. O caso é considerado extremamente raro, com um registro a cada 2,5 milhões de nascimentos. A anomalia foi diagnosticada ainda durante a gestação. Elas nasceram unidas pela cabeça e as veias do cérebro tiveram de ser separadas. Uma placa de silástico foi implantada para impedir que as partes separadas na primeira cirurgia se unissem novamente.

A cirurgia deste fim de semana começou no sábado, por volta de 6h30, e só terminou por volta de 10h deste domingo. O procedimento foi liderado pela equipe do professor doutor Hélio Rubens Machado, especialista em neurocirugia pediátrica, que fez a dissecção de cerca de 25% dos vasos sanguíneos restantes.

Outros 75% haviam sido separados em neurocirurgias anteriores, que ocorreram em agosto e novembro de 2022 e em março passado. A equipe da cirurgia plástica, liderada pelo professor doutor Jayme Farina Junior, ficou responsável pela cranioplastia — procedimento de fechamento da calota craniana e da pele que recobre a cabeça de cada uma das meninas. Cerca de 50 profissionais participaram.

— É uma cirurgia ultracomplexa, pois existe o compartilhamento de veias cerebrais. As gêmeas tinham dois cérebros, mas eles estavam rodados. É como se um cérebro invadisse o outro, o que torna o procedimento difícil. É impossivel interpretar as imagens num sistema bidimensional. Por isso usamos imagens tridimensionais, com modelos anatômicos tridimensionais, ou realidade virtual — explica Machado.
 

O professor afirma que a experiência mostra que a separação não pode ser feita de uma única vez, mas de forma progressiva para que, a cada etapa, o organismo se acomode à nova situação. A complexidade é tão grande que, na separação final, não há retrocesso e a cirurgia não pode ser interrompida.

As irmãs foram submetidas a diversos exames clínicos a cada etapa. O crânio e o cérebro das meninas foi mapeado através de tomografias e moldes feitos em impressoras 3D, que permitem uma visão ampla das artérias e veias sanguíneas. A cada cirurgia foi realizada cerca de 25% da separação dos cérebros.

O primeiro procedimento ocorreu em 6 de agosto de 2022, quando elas tinham 1 ano e sete meses. A segunda etapa, em 19 de novembro do ano passado, durou nove horas e contou com mais de 40 profissionais de saúde e de apoio. A terceira cirurgia, em março passado, durou sete horas - na ocasião foi usado um neuronavegador e realidade mista durante o procedimento cirúrgico.

Machado afirma que, no caso de gêmeos siameses unidos pelo crânio, fazer a separação é a alternativa, pois o prognóstico futuro é sombrio. A maioria vive apenas até a adolescência e com uma qualidade de vida extremamente desastrosa.

Segundo ele, não há como prever se as duas irmãs terão o mesmo desenvolvimento. Por isso, além da técnica cirúrgica, as equipes iniciam tão logo possível a reabilitação funcional, motora e cognitiva — de inteligência e comportamento.

— Isso explica porque precisamos de equipe tão grande, com 40 a 50 profissionais — diz Machado.

As meninas passam bem e se recuperam na UTI pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP-USP).