ENTREVISTA

"Precisamos de uma voz forte pela democracia no Sul Global", diz queniana sobre ida de Lula à África

Para Muthoni Wanyeki, diretora da Open Society Foundation para África, resistência democrática do Brasil serve de exemplo para o continente africano, que recebe a cúpula dos Brics nesta semana

Muthoni Wanyeki, diretora da Open Society Foundation para África e cientista política queniana - Divulgação

Ao resistir ao ataque aos Três Poderes em 8 de janeiro, o Brasil — e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — se transformaram em um importante exemplo democrático para os países do Sul Global, avalia a cientista política queniana e diretora da Open Society Foudantion (OSF) para África, Muthoni Wanyeki.

Às vésperas da cúpula dos Brics na África do Sul, que acontece entre 22 e 24 de agosto em Johanesburgo, o continente convive com a tensão de um conflito iminente após um golpe de Estado no Níger reavivar a disputa por influência na região entre Ocidente, Rússia e China.

Em entrevista exclusiva ao Globo durante sua visita ao Brasil no mês passado, Wanyeki analisa a relação Brasil-África antes e depois de Lula e pautas de interesse comum, como financiamento climático e reparação histórica pelos séculos de colonização. A cientista política queniana ainda destaca os principais pontos a serem abordados na cúpula dos Brics e os caminhos para rediscutir o multilateralismo sob o olhar das nações em desenvolvimento.

No mundo em que vivemos hoje, acho que a resistência e a renovação democrática do Brasil é algo que serve de exemplo para todos nós, especialmente porque é um exemplo do Sul Global.

Como a senhora avalia a relação entre o Brasil e o continente africano nos últimos anos?
Durante o primeiro governo Lula, o Ministério das Relações Exteriores inaugurou mais missões na África do que nunca. Ainda há muitas em comparação a outros países latino-americanos, em torno de 35. Ou seja, havia uma intenção real de aprofundar o intercâmbio comercial. Eu li um relatório sobre onde os africanos vão estudar no ensino superior hoje em dia e o Brasil é o quinto da lista. Havia esforços reais para construir a conexão África-Brasil. Sob Bolsonaro, muito disso foi desfeito.
 

Atualmente, estamos enfrentando muitas reversões democráticas na África. No primeiro governo Lula, estávamos no que chamamos de "terceira libertação" [período de ascensão econômica, entre 2000 e 2010]. Havia muitos compromissos com o fim dos golpes militares, [favoráveis ao] pluralismo político e aos direitos humanos. Para nós — que vimos o que o Brasil passou quando Lula voltou ao poder depois daquele ataque maluco aos Três Poderes — é inspirador. No mundo em que vivemos hoje, acho que a resistência e a renovação democrática do Brasil é algo que serve de exemplo para todos nós, especialmente porque é um exemplo do Sul Global.

Em sua primeira visita ao continente neste terceiro mandato, Lula disse que quer abrir mais embaixadas na África. Como essa aproximação diplomática pode ser benéfica para ambos os lados?
Se você observar a diplomacia tradicional, isso geralmente se refere ao aumento do comércio, intercâmbio cultural, turismo, educação... Mas acho que agora precisamos da voz de um ator forte do Sul Global, que seja uma voz democrática, para ajudar a levar adiante nossa agenda sobre democracia e reforma do sistema multilateral. As nossas instituições multilaterais não estão funcionando. Há muitas propostas da África e do Sul Global sobre isso: seja em relação aos assentos na ONU, acordos sobre dívidas ou justiça climática. Em todos esses aspectos, acho que há relações muito produtivas.

Lula voltará ao continente para a cúpula dos Brics na África do Sul, entre 22 e 24 de agosto. Como o grupo pode servir aos interesses dos países do Sul Global?
Acreditamos nos Brics como um ator para pautar formas alternativas de se estar no mundo e buscar nosso desenvolvimento. É uma forma do Sul Global pressionar coletivamente por mais voz e melhores acordos no sistema multilateral. Assim como o Brics é importante para nós, o Brasil é particularmente importante porque é uma democracia — a única outra democracia no grupo é a África do Sul. E a democracia sul-africana está sob grave ameaça. Portanto, estamos fazendo muitos planos para a cúpula e o que ela significa para nós na África.

Infelizmente, por causa da guerra [na Ucrânia] e do mandado de prisão contra Putin [emitido pelo Tribunal Penal Internacional], grande parte do debate sobre os Brics na África é: Putin virá? Ele não virá? A cúpula ainda acontecerá se ele for? A África do Sul vai prendê-lo? Todas essas são questões importantes, mas mostram que o significado mais profundo dos Brics para o Sul Global não está sendo bem coberto pela mídia: questões sobre desdolarização, financiamento climático, fluxos financeiros ilícitos, acordos de dívida...

As reparações não são apenas o reconhecimento do que aconteceu conosco durante a escravidão e a colonização, mas também das desigualdades dentro da ordem econômica global.

Uma agenda comum entre o Brasil e a África é o meio ambiente, especialmente o financiamento de perdas e danos por nações ricas. Quais são os principais desafios para a criação de fundos de reparação?
Em primeiro lugar, a negação. As pessoas certas ainda veem acordos equitativos como presentes para nós, vindos de pessoas que nos exploraram por séculos. Não é um presente para a África. As reparações não são apenas o reconhecimento do que aconteceu conosco durante a escravidão e a colonização, mas também das desigualdades dentro da ordem econômica global. Apenas os países do Sul podem contextualizar isso e dizer: "Vocês não estão nos fazendo um favor. Vocês não estão nos dando dinheiro: estão devolvendo o que ganharam e o que tiraram de nós". Não se trata de uma doação. É a correção do racismo econômico estrutural.

Tanto o Brasil quanto a África ainda sofrem as consequências de séculos de colonização. O que ainda precisa ser feito para a recuperação histórica e cultural desse período?
Acho que temos muito a compartilhar em termos de esforços e iniciativas em torno da restituição cultural, um movimento que realmente cresceu na África. É a ideia de recuperar objetos que foram saqueados de nós, que são sagrados ou têm valor cultural e espiritual, e combater todos os argumentos sobre por que precisam ficar onde foram parar. No Quênia, tivemos um caso bem-sucedido contra a tortura colonial que resultou em um pedido de desculpas e um monumento em indenização. Tivemos uma indenização para uma comunidade na Namíbia que sofreu genocídio nas mãos dos alemães. Temos um caso em andamento de mulheres mestiças do Congo que foram retiradas de suas famílias negras e enviadas para orfanatos na Bélgica, totalmente destituídas da sua herança. A reparação não é um mito: há pessoas que vivem com essas cicatrizes em seus corpos e medidas práticas podem ser feitas agora para começarmos a construir um campo de reparações.

Qual a importância de rediscutir o multilateralismo hoje?
O sistema multilateral não funciona. Não está funcionando em termos de paz e segurança. Não está funcionando em termos de financiamento. Não está funcionando porque arrasta todos nós para esse novo tipo de competição geopolítica. Para nós, na África, nossas relações com a China têm sido altamente benéficas. Não caímos nessa ideia de ver o Ocidente como bom e a China, a Índia e todos os outros como ruins. Não é esse o caso. O que queremos é a flexibilidade, o direito de escolher o que precisamos dos parceiros internacionais. Queremos nos envolver no sistema multilateral pelo ponto de vista do interesse africano, em vez de tentarmos adaptar nossos interesses ao que nos dizem que deveria ser nosso interesse. Essas não são lutas apenas africanas. São lutas asiáticas. São lutas latino-americanas. Se pudermos fazer isso juntos, teremos mais chances de ter sucesso.