BRASIL

"Se eu deitar de barriga, não sei o que está rolando", diz Laís Souza sobre abuso de cuidador

Tetraplégica, ex-atleta quer que seu drama ajude outras pessoas que sofrem abuso caladas

Laís Souza: ex-atleta da ginástica artística e do esqui aéreo - Divulgação/@grupoluz.com.br

Um acidente em Salt Lake City, em janeiro de 2014, mudou a vida de Laís Souza. A ex-atleta da ginástica artística, que disputou Atenas-2004 e Pequim-2008, treinava para o esqui aéreo, de olho nos Jogos de Inverno de Sochi, quando sofreu um acidente.

Ao bater em uma árvore, perdeu os movimentos do corpo do pescoço para baixo. Desde então, passou a colecionar vitórias no campo da saúde, como voltar a respirar sem auxílio de aparelhos. Durante a pandemia, passou a se dedicar à pintura, usando a boca para encaixar o pincel. Ela quer voltar ao esporte mas ainda não encontrou uma modalidade paralímpica para chamar de sua.

 

Com o auxílio de uma cadeira de rodas, Laís dá palestras, vai a barzinho, gosta de encontrar amigos, almoçar em família e sair com a namorada. Mas depende de ajuda 24 horas por dia. Precisa que alguém lhe tire da cama para iniciar seu dia. Contou que sofreu abuso justamente de cuidadores, profissionais que precisam dar conforto e serem solidários. Veja o relato da ex-atleta:

“Não esperava que minhas declarações sobre abusos que sofri iam repercutir tanto. Tenho certeza que muitos têm interesse em saber com riqueza de detalhes o que me aconteceu e só. Bom, esse não é o meu objetivo. Não tenho a intenção de contar o que aconteceu tim-tim por tim-tim. Resolvi falar sobre esse assunto e, agora em depoimento, porque tenho um recado, tenho um objetivo.

Minha intenção ao compartilhar essas histórias é alertar e conscientizar sobre abusos recorrentes que minorias estão sofrendo aos montes. E muitas vezes caladas. Esse é um problema sério. Falar sobre abuso é fundamental para dar voz às vítimas e encorajá-las na busca por ajuda e justiça. Temos de nos ouvir e nos apoiar.

Quero que minhas palavras sirvam como alerta para outras pessoas. Deficientes ou não. Mulheres ou não. E que elas ajudem a salvar pessoas. Tenho certeza que, enquanto você lê este depoimento, uma mulher está sendo abusada no ônibus, sendo encoxada sem a sua vontade. E quem tem limitações físicas como eu, está ainda mais vulnerável.

Não é fácil reviver acontecimentos dessa natureza e imagino que muitas pessoas já tenham passado por isso e não conseguem se expressar. Ficam sem forças para sair desta situação. Talvez sofram outras violências. Tenho recebido muitas mensagens de relatos de histórias de abusos, via rede social. Em um deles, uma menina disse que se identificava comigo, que passava por isso há dez anos e que, inclusive, apanhava e era vítima de abuso psicológico.

Eu fui abusada quando tinha quatro anos. Mas só com o tempo e com a maturidade é que fui perceber que era abuso. Ficou guardado em algum lugar, eu era criança, não tinha elementos ainda para entender. Só caiu a ficha mesmo, vinte anos depois. Sabe quando a família do vizinho te dá carona? Quando é alguém conhecido ou do convívio? Bom, ele me chamou para sentar no seu colo, eu fui e assim aconteceu. Não tive coragem de contar para minha mãe. Na verdade não tive coragem de falar para mim mesma.

Até antes do meu acidente em 2014 eu não sabia direito e ainda me culpava. Encontrava todo tipo de desculpa para não culpar o outro e sim a mim mesma. O assunto passou a ser mais debatido, ganhou a TV e as redes sociais e as pessoas passaram a ter mais informações. Fui me identificando com histórias e situações e entendendo que eu realmente havia sofrido abuso. Acho que depois do acidente muitas situações ficaram claras para mim.

Fui atleta da ginástica artística por vinte anos. Comecei aos 4. No esporte nada disso aconteceu comigo. Não faz muito tempo que escândalos de abuso na seleção norte-americana de ginástica e também aqui no Brasil, com um grupo específico, veio à tona. Mas comigo, graças a Deus, não. Nunca.

E toda vez que surgem casos de abuso, fico mexida, parece que a gente volta àquela sensação. E eu passei a ficar bastante vulnerável após meu acidente. E foi a mesma coisa, inesperado. Aconteceu, guardei e não falei.

Em 2013 eu passei a me dedicar ao esqui aéreo de olho na Olimpíada de Inverno, que seria em Sochi no ano seguinte. E em um treinamento em Salt Lake City, nos Estados Unidos, sofri um acidente. Bati em uma árvore. Fiquei tetraplégica, perdi os movimentos, a sensibilidade e o controle de todos os órgãos abaixo do pescoço. Passei a precisar de cuidados médicos frequentes e intensivos. Eu dependo de alguém até para me levantar da cama e ir ao banheiro. Se meu cuidador não aparecer para trabalhar, eu não saio da cama.

Já me peguei pensando no que aconteceu naquele dia e com vontade de voltar atrás ou ao lugar e ver se tem algum portal para eu passar de volta. Porque um segundo mudou a minha vida. Mas hoje não penso assim. Acidentes são acidentes, podem acontecer com qualquer um e em qualquer momento. Tenho uma vida normal, adoro sair para beber cerveja e tenho uma namorada.

Atualmente, a equipe que me auxilia no dia a dia é cuidadosa e foi selecionada para garantir meu bem-estar e conforto. E estou imensamente grata por isso. Mas sim, sofri abusos no passado depois do meu acidente, abusos inesperados. Já aconteceu tanto com homem quanto com mulher. A gente tem que se educar e ver mais essas coisas, ser mais atenta até para adotar práticas de segurança.

Se eu deitar de barriga, por exemplo, não sei o que está rolando, porque tenho pouca sensibilidade. São muitos procedimentos que preciso fazer de barriga para baixo. Isso é só um exemplo para dizer, inclusive, que pode acontecer outras vezes e em qualquer outra situação. Como ter certeza que não ocorreu outras vezes?

Hoje tenho cinco pessoas que me ajudam diariamente, incluindo um fisioterapeuta que me acompanha desde 2016, e cuidadores ou enfermeiros.

Se me perguntar se há muita rotatividade entre os profissionais que trabalham comigo, a resposta é sim. O custo deste tipo de serviço é alto e quem é bom recebe propostas. Já tive vários funcionários trabalhando em casa e por isso fica aqui meu alerta. Para que as famílias fiquem de olho, aconteceu comigo e resolvi falar.

Costumo usar uma frase: "Caí algumas vezes, mas nasci para levantar". Me sinto assim todos os dias, porque há dias bons e ruins. Gostaria que as pessoas tivessem mais empatia, que olhassem mais para as minorias. Se estamos gritando, não é à toa. Temos de parar um pouco para ouvir o outro, não podemos normalizar casos de abusos como o meu. Quero que minha voz seja ouvida e que sirva de conhecimento horizontal, que todos possam aprender algo”