Corrupção militar na Ucrânia põe em risco lua de mel do Ocidente com governo Zelensky
Indícios de desvios e superfaturamento se acumulam no setor público de Kiev, enquanto presidente tenta apresentar uma solução e manter unidade nacional e apoio externo
Em paralelo à guerra que trava com a Rússia para manter sua soberania, a Ucrânia ampliou os esforços para combater a corrupção, um problema crônico do país. Com suspeitas de irregularidades que se acumulam, incluindo algumas relacionadas ao orçamento militar e com uso de recursos da ajuda internacional, o gabinete de Volodymyr Zelensky tenta dar uma resposta rápida para não perder a unidade interna e nem o auxílio ocidental.
A corrupção oficial foi um tabu durante o primeiro ano de guerra, à medida que os ucranianos se reuniam em torno do seu governo em uma luta pela sobrevivência nacional. Mas o anúncio de Zelensky, no domingo à noite, sobre a destituição do ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, elevou a questão ao mais alto nível da política ucraniana após uma enxurrada de relatos de corrupção e má gestão financeira no seu departamento.
A troca no comando da Defesa acontece em um momento crucial da guerra, quando a Ucrânia conduz uma contraofensiva no sul e no leste do país, que depende fortemente dos aliados ocidentais para assistência militar. Estes aliados têm, desde o início da guerra, pressionado o governo de Zelensky para garantir que as autoridades ucranianas não desviem alguns dos milhões de dólares em ajuda que fluem para Kiev.
A certa altura deste ano, cerca de US$ 980 milhões (cerca de R$ 4,8 bilhões) em contratos de armas perderam as datas de entrega, de acordo com dados do governo, e alguns pré-pagamentos de armas desapareceram em contas estrangeiras de intermediários, de acordo com relatórios apresentados ao Parlamento. Embora não tenham surgido detalhes precisos, as irregularidades sugerem que os responsáveis pelas compras do ministério não examinaram os fornecedores ou permitiram que os negociantes saíssem com dinheiro sem entregar o armamento.
— A questão aqui é: ‘onde está o dinheiro?’ — disse Daria Kaleniuk, diretora executiva do Centro de Ação Anticorrupção na Ucrânia, um grupo dedicado a erradicar a corrupção pública que agora se concentra no lucro da guerra. — A corrupção pode matar. Dependendo do quão eficazes formos na proteção dos fundos públicos, o soldado terá ou não uma arma.
Reportagens da mídia ucraniana também apontam para pagamentos com valor superfaturado de suprimentos básicos para o Exército. Jornalistas investigativos mostraram que o Exército pagou 17 hryvnia (ou R$ 2,29) por unidade de ovo – muito acima dos preços vigentes, de acordo com uma reportagem do Dzerkalo Tyzhnia. Feijões enlatados foram comprados à Turquia por um preço superior ao preço das mesmas latas nos supermercados ucranianos, noticiou o mesmo jornal, embora se esperasse que os militares comprassem a preços inferiores aos preços de revenda.
O Ministério da Defesa também comprou milhares de casacos que se revelaram insuficientes para o inverno rigoroso da Ucrânia.
Problema histórico
A corrupção é uma aberta na Ucrânia há anos. Quando virou candidata à adesão à União Europeia, em junho de 2022, a Comissão Europeia apontou que a melhoria dos níveis de corrupção, especialmente por parte de altos funcionários do governo, seria uma prioridade inevitável para a adesão.
O Ministério da Defesa e as Forças Armadas não são as únicas fontes de corrupção ligadas ao dinheiro que o país deve gastar para se defender contra a invasão russa, mas com as despesas militares representando quase metade do orçamento nacional, os relatórios de escândalos de contratação apontam para uma concentração neste setor, embora haja exceções.
O Ministério da Defesa e as Forças Armadas não são as únicas fontes de corrupção ligadas ao dinheiro que o país deve gastar para se defender contra a invasão russa. Zelensky, por exemplo, demitiu a liderança do departamento de controle de fronteiras em fevereiro, devido a irregularidades detectadas no serviço aduaneiro.
— A situação só piorou durante a guerra —disse Danilo Hermantsev, deputado do Servo do Povo, partido de Zelensky, e chefe da comissão parlamentar sobre finanças, impostos e tarifas na altura.
Reznikov, que ocupou vários cargos durante o mandato de Zelensky e apresentou sua demissão na manhã de segunda-feira, não foi pessoalmente implicado nas alegações sobre os contratos militares. Mas a ampliação das investigações no seu ministério representou um primeiro desafio significativo para o governo em relação às medidas anticorrupção desde o início da invasão.
Dois funcionários do Ministério da Defesa – um vice-ministro e o chefe de compras – foram presos por causa de relatos de compra de ovos superfaturados para o Exército. Zelensky demitiu os chefes dos escritórios de recrutamento militar no mês passado, depois que surgiram alegações de que alguns aceitaram subornos de pessoas que tentavam evitar o serviço obrigatório.
As revelações públicas de má gestão até agora não afetaram diretamente as armas estrangeiras transferidas para o Exército ucraniano, nem o dinheiro da ajuda ocidental, mas não deixam de minar o sentimento de apoio inquestionável ao governo que os ucranianos demonstraram durante o primeiro ano da invasão em larga escala promovida pela Rússia.
Na semana passada, Reznikov disse que estava confiante de que o ministério recuperaria os pré-pagamentos de fornecedores que sumiram. Autoridades governamentais reconhecem que alguns contratos militares não foram cumpridos e que algum dinheiro desapareceu, mas dizem que a maior parte dos problemas surgiu nos primeiros meses caóticos da invasão.
Traição à pátria
Apesar das justificativas, a preocupação em Kiev sobre uma crescente percepção da corrupção e seus impactos na guerra impulsionaram uma radicalização nas medidas para erradicar os desvios no setor público. Zelensky propôs uma enxurrada de iniciativas anticorrupção — a mais controversa delas, usar os poderes da lei marcial para punir os crimes como traição.
A iniciativa desencadeou uma onda de críticas de que o tratamento rigoroso pudesse levar ao abuso dos poderes da lei marcial, além de permitir que a agência de inteligência nacional, a SBU, que está sob o controle direto do presidente, concentre mais poderes no combate à corrupção oficial.
O conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, reuniu-se com altos funcionários ucranianos para discutir os esforços para erradicar a corrupção durante a guerra na semana passada, incluindo os chefes de uma agência de investigação especializada, um gabinete do Ministério Público e um tribunal que foram criados após a aproximação da Ucrânia ao Ocidente em 2014, com a ajuda dos Estados Unidos e de organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional. Estas agências poderiam perder o poder sob a proposta de Zelensky.
Em entrevista ao The New York Times, a presidente da comissão anticorrupção do Parlamento ucraniano, Anastasia Radina, afirmou que os doadores ocidentais estão observando de perto a forma como a Ucrânia aborda o problema da corrupção e estão cautelosos com o potencial enfraquecimento das agências. Legisladores americanos já usam o tema como argumento para limitar a ajuda militar.
Fontes do Governo dos Estados Unidos e de um Ministério dos Negócios Estrangeiros de um Estado-membro da União Europeia explicaram nos últimos dias ao El País que estão reforçando a sua rede de informação alternativa à oficial em Kiev para monitorizar o destino da ajuda que fornecem à Ucrânia.
'Escândalos são bons'
Embora a percepção de corrupção no país permaneça elevada, algumas iniciativas parecem apontar para uma mudança de paradigma. No fim de semana passado, Ihor Kolomoisky, um dos homens mais ricos da Ucrânia, foi preso, em um golpe à influência política dos oligarcas. Suspeito de fraude e lavagem de dinheiro, Kolomoisky apoiou a campanha eleitoral de Zelensky em 2019, mas desde o início da guerra, o presidente parece ter rompido todos os laços com ele.
Em outras ações repressivas neste ano, os investigadores avançaram com um dos processos mais importantes, contra o chefe do Supremo Tribunal da Ucrânia, que foi deposto e preso em maio, por suborno. Além disso, um vice-ministro da Economia está sendo julgado, acusado de desvio de fundos de ajuda humanitária.
O fato de casos de corrupção de alto nível estarem surgindo é positivo, disse Andrii Borovyk, diretor da Transparência Internacional na Ucrânia, e não uma indicação de uma nação atolada em abuso de informação privilegiada; isso mostra que o país pode lutar na guerra e na corrupção ao mesmo tempo, disse ele.
“Escândalos são bons”, disse ele. “A guerra não pode ser uma desculpa para parar de combater a corrupção”.