Conheça Carolina Markowicz, cineasta que, segundo Walter Salles, 'não amacia conflitos'
Roteirista desponta como revelação do cinema nacional com o premiado 'Carvão' e o inédito 'Pedágio, que estreia hoje no Festival de Toronto e é o único longa dirigido por uma mulher na briga para representar o Brasil no Oscar 2024
Se você ainda não ouviu falar de Carolina Markowicz, pode apostar: isso não tardará a acontecer. A diretora e roteirista paulistana de 40 anos desponta como uma das maiores revelações atuais do cinema nacional. Que o diga o cineasta Walter Salles, admirador de seu trabalho.
"Carol é uma das diretoras mais talentosas do cinema brasileiro. Seu olhar é original, agudo, ácido, e ao mesmo tempo revestido de uma humanidade que não amacia os conflitos" — elogia o diretor de “Central do Brasil” e “Diários de motocicleta”. "Todos os elementos que compõem seus primeiros filmes caminham numa mesma direção, algo raro. As fissuras dos personagens refletem as do país, e afloram corajosamente".
Ele tem razão. De fato, Carolina não alivia. Não está interessada em finais felizes. Tampouco em pegar leve. Em seus filmes, crava fundo o dedo na ferida para esfregar na cara da sociedade a vida como ela é. Escolhe falar de temas complexos, se inspirando nas contradições e na hipocrisia do ser humano para provocar. Tudo regado a um humor sarcástico, ácido, desconfortável.
Foi assim no curta “O órfão” (2018), sobre um menino devolvido inúmeras vezes por diferentes pais adotivos. É assim em seu primeiro longa, “Carvão” (2022), centrado numa família disfuncional que aceita um acordo diabólico por dinheiro. Não seria diferente com “Pedágio” (2023), um dos seis filmes pré-selecionados para concorrer uma vaga na categoria Filme Internacional do Oscar (Carolina é a única diretora mulher no páreo).
O longa lança uma crítica mordaz à opressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+, com direito a cura gay e discursos religiosos homofóbicos iguais aos de personagens da realidade brasileira. “É como enxergo o mundo”, resume a diretora.
"A violência, para quem convive com ela, é muito normalizada e não acho producente passar um verniz nisso, dizer “ah, vai acabar tudo bem”. Não está tudo bem e vamos enxergar isso", afirma Carolina. "O humor é ferramenta forte para as pessoas se enxergarem no ridículo. Às vezes, parece que na ficção existe uma dificuldade de enxergar a dureza, mas na vida a gente está o tempo inteiro com ela do lado".
Sucesso internacional
Carol vem conquistando o mundo com seus filmes sem final feliz. Não é exagero. Para começar, é a primeira brasileira a receber prêmio Tribute no Festival de Cinema de Toronto, no Canadá. Foi escolhida na categoria “talento emergente”. Ganhará o troféu no próximo domingo (10), em cerimônia na qual também serão laureados Almodóvar e Spike Lee.
Cameron Bailey, CEO do evento (onde ela já esteve quatro vezes exibindo seu trabalho), define Carol como “uma das diretoras mais destemidas de sua geração”. Em Toronto, a diretora também realiza, nesta sexta-feira (8), a estreia mundial de “Pedágio”, selecionado também para o Festival de San Sebastian, na Espanha, no fim do mês. O segundo longa da cineasta tenta uma vaga para representar o Brasil no Oscar 2024.
Da Academia, aliás, ela é chegada. Foi convidada, em 2021, a fazer parte dos membros votantes do Oscar graças à repercussão de seus curtas. Ao todo, são seis, exibidos em 300 festivais pelo mundo e que, juntos, conquistaram mais de 80 prêmios. Destaque para “O órfão”, único filme brasileiro que levou a Queer Palm na Quinzena dos Realizadores, em Cannes.
Duas semanas atrás, “Carvão” levou o troféu de melhor primeira direção no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Foi também o longa indicado pela Academia de Brasileira de Artes e Ciências Cinematográficas para representar o Brasil no Goya (o “Oscar espanhol”).
Em “Pedágio”, a “fissura”, como define Walter Salles, é a homofobia que, em pleno 2023, sustenta inacreditáveis rituais de conversão. Isso no Brasil, um dos países com maior população LGBTQIA+ e, ao mesmo tempo, os maiores índices de violência e discriminação contra indivíduos dessa comunidade.
"É inacreditável que em 2023 pessoas ainda tenham essa paranoia sobre quem está trepando com quem. Se houvesse a mesma obsessão com honestidade do que se tem com o cu, estaríamos em melhores lençóis", compara Carolina. "Recentemente, conheci uma mãe que tinha um filho preso por tráfico de drogas, mas ela parou de falar com ele porque era gay".
Algo parecido acontece em “Pedágio”, em que a personagem de Maeve Jinkings não vê problema em cometer roubos, mas fica em pânico só de pensar que o filho (Kauan Alvarenga) é gay. Mais ainda de ele parecer gay. Ela então, paga para que ele frequente um ritual de conversão.
“Exu arrenda o corpo até os 17 anos, passou disso é usucapião. Se faz a virada para homem adulto, já era, não retorna mais, o pico da masculinidade se perde no tempo”, diz uma personagem do longa, que recebe a mãe na porta da igreja onde se desenrola a “cura gay”.
Mira na hipocrisia e no circo do cotidiano
Produção da Biônica Filmes, “Pedágio” é um filme sobre inversões de valores normalizados, sobre a ironia dos nossos tempos, mais parecidos com ficção do que com realidade. São as várias camadas desse raciocínio torto que deu origem ao roteiro de Carolina.
"Tem o socialmente aceitável, “o que os outros vão falar?”. Aquela velha história “se não é meu filho, não tenho nada contra”. Falam de diversidade, mas da porta para dentro…", analisa a diretora Carolina Markowicz. "Fora discursos de políticos e de líderes religiosos que naturalizam expressões homofóbicas, transfóbicas que contribuem para um ambiente hostil. Nós vemos pessoas relevantes da nossa política que dão vergonha. Dizer para afastar criança da Frozen porque ela é lésbica… E há esses pastores com esses rituais, é um circo".
Um circo que ela chegou a ver de perto. Não muito. Porque, como brinca, “não estava a fim de me curar, mas de converter pessoas”. É que foi durante “Pedágio” que Carolina e Maeve começaram a namorar. As duas já tinham rodado “Carvão” juntas, mas a paixão só bateu foi no segundo filme.
— Estávamos solteiras e, aí, rolou — diz ela, admiradora da namorada. — É gênia, tem doçura ácida, é versátil, natural, focada. Tem forte intensidade emocional, inteligência cênica e consegue fazer um tipo de humor austero que eu gosto.
Experiência com caretice
Sexualidade é uma constante nos filmes de Carolina. Embora sua experiência pessoal tenha sido mais tranquila que a de seus personagens. Não enfrentou conflitos familiares e viveu um processo interno natural. Mas encarou a caretice de uma cidade pequena. Filha de um economista e uma engenheira agrônoma, Carolina nasceu em São Paulo, mas cresceu em Bragança.
— Existe a coisa da performance em que ser gay é ser mais feminino para o homem e mais forte, brava para a mulher. Então, na escola, era aquela coisa: “Sapatão” — lembra. — Não tive algo como “ia me assumir e não pude”. Nem cheguei nesse ponto porque tudo era tão repressor... A coisa da convenção da família tradicional em que você nem chega perto de cogitar assumir. Num momento em que está se entendendo não havia ambiente convidativo para liberdade. Só mais tarde fui assumir isso. Minha família foi receptiva e legal.
Quando deixou o interior, Carolina desabrochou.
— O filme também é sobre isso: estou aqui agora fazendo meus filmes, com o privilégio de estarem indo para os principais festivais. Só consegui ter isso por conta do apoio da minha família. Quando há apoio dos mais próximos, a gente se sente forte para encarar o mundo como ele é. Embora haja sátira à questão religiosa, que trata a sexualidade desse jeito, o filme também busca mostrar isso.
O fato de ser diretora e roteirista possibilita que Carolina conte suas histórias do jeito que deseja. Ela escreve roteiros (“em parques e cafés, porque em casa me dá sono”) já pensando no que vai funcionar para a direção.
— Não consigo dissociar direção de roteiro. Escrevo meio dirigindo e dirijo ainda escrevendo. Vou pensando em como gostaria de filmar determinada cena, escrevo coisas para lembrar de como pensei em filmar aquela cena. Acho que uma cena pode ser boa ou ruim dependendo de como ela foi escrita e dirigida — afirma.
Com “Pedágio” ganhando o mundo, a cineasta agora se dedica a dois novos projetos. Um filme “sátira à elite”, a ser filmado no Brasil, e um longa desenvolvido com uma produtora americana.