'O modelo da maternidade está em colapso', afirma psicanalista
Em novo livro, a pesquisadora Vera Iaconelli busca entender as razões que nos levaram ao colapso da maternidade
Ao longo de séculos, a ideologia maternalista sobrecarrega as mulheres com a responsabilidade pelos cuidados. Com mais acesso à informação, as mães de hoje se cobram ainda mais - desde restringir o uso de telas dos filhos até garantir um prato colorido nas refeições. Daí à culpa por não alcançarem a meta da maternidade perfeita (não, ela não existe!), é um passo.
O resultado é que o burnout materno tem enchido consultórios. Em seu novo livro — “Manifesto antimaternalista”, a ser lançado no próximo dia 15 —, a psicanalista Vera Iaconelli se dedica a desvendar por que chegamos ao colapso da maternidade.
O que é o maternalismo, que inspira o título do livro?
A ideologia maternalista é a ideia de que cabia só às mulheres a responsabilidade e o cuidado. A partir do século XIX, isso fica de um jeito cada vez mais sem saída, porque a mulher passa também a ser provedora financeira. Se a gente não volta lá e tenta entender de onde ela vem e como funciona, não consegue se livrar dessa ideologia que, passado mais de um século, ainda nos domina.
Por que o desejo de escrever um manifesto anti-maternalista?
Porque as mulheres estão adoecendo, por terem que ser mães, mulheres, ter uma vida social, marital. Isso é inconciliável com o trabalho e todas as demandas. Da minha parte, interessa dizer, do ponto de vista da psicanálise, por que a gente não está conseguindo sair dessa equação. Qual a sua parte naquilo do qual se queixa, onde reproduz um modelo que te faz sofrer.
O livro mostra que, no século 18, o instinto materno não era suficiente para garantir os cuidados com as crianças, por isso muitas iam para orfanatos. O instinto materno é uma construção social?
Essa questão é tratada num livro da Elisabeth Badinter. Ela diz que não é verdade que a gente tem um instinto, ou seja, algo que vem com a espécie e é igual entre todos da mesma espécie. A gente sabe pela própria psicanálise que o ser humano é atravessado pela linguagem. O que é instintual para nós não opera como opera para os demais mamíferos. Tanto que, de uma mulher para outra, de uma época para outra, de um lugar para outro, as formas de cuidar da prole se modificam enormemente.
Em algum momento da história, a mulher foi recompensada pelo que a senhora define como “bem coletivo de criar bons cidadãos para o bem da pátria”?
Com o começo do capitalismo, a mulher foi empurrada para dentro de casa, num modelo "abra mão da sua vida e seja mais mãe do que mulher". Isso foi feito com muita pressão social, mas também com muita compensação narcísica, que ainda funciona hoje. É uma coisa extremamente violenta, mas que foi trazendo um status para a mulher.
Ainda existe certa exaltação da ideia do "bela, recatada e do lar"?
É importante lembrar que o cuidado tem um valor incomensurável. O problema é como ele está equalizado. É o puro suco de maternalismo essa ideia da mulher que tem um instinto para ser mãe, mas que também se instrui: a mãe científica, que aprende coisas de puericultura, de pedagogia, e também que cuida da casa e cuida dela. Isso está muito colocado no maternalismo na virada do século 19 para o 20, nas revistas para mulheres... A primeira missão é cuidar dos filhos, mas não pode relaxar na aparência. Tem que cuidar do marido também e, se puder ajudar a renda doméstica fazendo um trabalhinho, sem competir com o marido, é legal.
As redes sociais também reforçam isso? Essa cobrança agora pelo autocuidado, de ter de olhar para você mesma...
As redes ecoam essa visão neoliberal do cuidado de si, da performance, de ser 100%. Se você não está conseguindo, é porque está dormindo muito e trabalhando pouco. Depende de você, pensamento positivo... Não existe ser social, não existe coletividade, existe você e o seu desejo.
Com mais acesso à informação, as mães se cobram de entender de tudo, não dar telas, dar cinco cores de alimentos nas refeições e criar os melhores seres humanos, sem falhar?
A missão da mulher hoje não é criar cidadãos, ao contrário, é criar CEOs, sujeitos performáticos, que saibam muitas línguas, que tenham cérebro muito estimulado, saúde, adaptação grande às demandas capitalistas. Então, a ideia não é mais o cidadão pela pátria, isso é totalmente anacrônico. Agora é o cada um por si, o estimular as competências. O bebê já tem que aprender um monte de coisa, tudo tem um caráter de formar sujeitos extremamente aptos ao sucesso.
Há mães tão sobrecarregadas que chegam a desejar ir embora sem os filhos, tal qual o livro “A filha perdida”….
As mulheres têm formulado essa questão do excesso, quase de um desejo de desistir da maternidade. Algumas dizem: "do próximo filho, quero ser o pai". Ou seja, quero ter filhos, amo meus filhos... O que não amo é o modelo de maternidade da nossa época. Gostaria de estar com meus filhos como os homens costumam estar, sem prescindir da vida pessoal, do seu tempo, da carreira e, mais do que isso, sem se culpar. Muitas acabam hospitalizadas e na, hospitalização, conseguem fugir inconscientemente.
A maternidade está em colapso?
Esse modelo de maternidade tende ao colapso, porque hoje, por exemplo, no Brasil, a gente tem metade das famílias sendo administradas por mulheres. E, dessa metade, quase 15% sozinhas. Como é possível sair para trabalhar para sustentar os seus filhos financeiramente e cuidar deles? Você vai ter que chamar outra mulher, que também vai deixar os filhos dela, para cuidar dos seus. Então, é uma cadeia de mulheres, uma pirâmide, né? Na qual sempre vai sobrar alguma coisa que não vai ser cuidada.
A senhora tem atendido muitos casos de burnout materno no consultório?
Sim, até brinco que as mulheres passaram de ser queimadas na fogueira para ser queimadas pelo burnout. Isso é uma recorrência na clínica psicanalítica, e em outras também. Como na psiquiátrica, porque não só elas estão sobrecarregadas na esfera dos cuidados e da responsabilidade financeira, mas também porque se culpam por não darem conta. Aí entra a questão da mentalidade, quando a mulher acha que ela deveria estar fazendo mais, que ela deveria conseguir o impossível. A gente começa a pensar que mentalidade é essa que nos leva ao burnout para além das demandas externas.
Como se livrar da culpa?
Quando a gente fala em culpa, está falando que aquilo que de fora nos é exigido nos afeta porque também nos é exigido de dentro. A gente só consegue fazer frente a isso se não for capturada por ela. Por que a gente ainda se identifica com o maternalismo? Não deixa de ser um lugar de valor. O marido, que no ambiente público domina, em casa te entrega o bebê e fala: 'só você sabe fazer ele dormir'. Então, não deixa de ser um lugar de poder, um lugar de poder muito ruim, mas é um lugar de poder. Estamos capturadas pela fantasia de performance, retroalimentada pelo neoliberalismo, no qual vou dizer, 'nossa, olha só, eu sou CEO da empresa, estou linda, de unha feita, cuido do meu filho, só eu consigo botar ele para dormir, e ainda faço ginástica'.
Qual a saída?
Acho que as coisas partem da mudança de mentalidade. Conforme a gente vai se conscientizando das coisas, vai mudando nossa perspectiva. Gosto muito de comparar com a questão racial no Brasil. Vai tendo uma mudança de mentalidade e ela vai forçando as mudanças políticas. E o contrário também, as mudanças políticas e econômicas vão mudando a mentalidade. Estamos numa espécie de curva de rio, onde algo que é econômico e político não se sustenta e as mentalidades estão mudando.