SAÚDE

Vender sangue? PEC que propõe comércio de plasma enfrenta resistências no Senado; entenda

O plasma é uma fração líquida que corresponde a 55% do volume de sangue e pode ser usado para o tratamento de hemofilia, câncer, Aids e imunodeficiências

Segundo a Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), cerca de 85% do total de plasma produzido pelos bancos de sangue privados é descartado - Divulgação

Com votação adiada seis vezes no Senado Federal, a proposta de alterar a Constituição para permitir a comercialização do plasma humano, inclusive para o exterior, enfrenta resistência de parlamentares governistas e desagrada o Ministério da Saúde mesmo após uma série de mudanças no texto.

O plasma é uma fração líquida que corresponde a 55% do volume de sangue e pode ser usado para a produção de medicamentos para o tratamento de hemofilia, câncer, Aids, doenças renais e imunodeficiências.

Batizada de PEC do Plasma, a matéria foi apresentada pelo senador Nelsinho Trad (PSD), em 2022, após a percepção de desperdício de plasma nos laboratórios particulares do país: segundo estimativas da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), cerca de 85% do total de plasma produzido pelos bancos de sangue privados é descartado. Os outros 15% são usados em transfusões de sangue.

Hoje, apenas a Hemobrás, vinculada ao Ministério da Saúde, é autorizada a processar o componente e transformá-lo em medicamentos ou usá-lo em pesquisas.

Diante disso, a proposta inicialmente defendia a liberação da coleta de plasma humano no país também para a rede privada. Na época, Trad usou como base dados do próprio ministério que apontaram que, de 2017 a 2023, foram perdidos 597.975 litros de plasma no país, o equivalente ao material coletado em 2.718.067 (2,7 milhões) doações de sangue.
 

Controvérsias
As divergências e embate com o governo nasceram após alterações na proposta feitas pela relatora da PEC, a senadora Daniella Ribeiro (PSD). Ela incluiu no texto a possibilidade de comercialização do plasma por hemorredes e laboratórios privados para outras empresas, até mesmo para fora do Brasil. A senadora também defendia a remuneração da coleta de plasma, modelo que permitiria que os doadores recebessem dinheiro pela doação — a última alteração, contudo, foi retirada da PEC após críticas de colegas e de secretários do Ministério da Saúde.

— Uma brecha para a comercialização é grave porque temos o hábito de ter a doação voluntária. Pela necessidade e pobreza, as pessoas venderiam o próprio plasma e isso colapsaria a Hemobrás e acabaria com o campo de política pública do SUS. Plasma é uma parte do sangue humano, não é commodity para comercializar — avalia a vice-líder do governo no Congresso, senadora Zenaide Maia (PSD).

A relatora da PEC sustenta que a comercialização do plasma irá ampliar e melhorar o atendimento dos laboratórios aos pacientes brasileiros. Segundo ela, a Hemobrás precisaria ser quatro vezes maior para atender toda a demanda do país.

— Hoje somos completamente dependentes dos Estados Unidos no quesito medicamentos. Atualmente apenas a Hemobrás tem a autorização para coletar plasma e produzir pesquisas a partir desse material, mas mesmo que ela funcione a 100% da capacidade, seria necessário quatro vezes mais para atender todo o Brasil — afirma a senadora.

Mesmo com as mudanças apresentadas pela relatora no último dia 30 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a proposta segue sem consenso na Casa. O líder do governo, senador Jaques Wagner (PT), disse ter ido ao gabinete da senadora acompanhado do senador Humberto Costa (PT-PE) para tentar um acordo, mas acredita que a ala precisa de mais tempo. A articulação tem recebido apoio do Ministério da Saúde.

Para o governo, a venda do componente não resultaria em acesso aos medicamentos à população de baixa renda e provocaria desfalque no banco de sangue, prejudicando o desenvolvimento da Hemobrás.

Também há um embate na permissão da PEC para a venda do plasma ao exterior. Na visão da Saúde, as doações de sangue e plasma devem retornar como benefícios para os brasileiros, por meio de transfusões ou novos remédios e tratamentos. Além disso, a avaliação é que a comercialização do plasma para outros países pode desencadear uma possível vulnerabilidade do Brasil em casos de emergências e catástrofes.

Críticas de secretários
Em parecer conjunto após o último encontro da CCJ para discutir o tema, os secretários da Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo Industrial da Saúde, Carlos Gadelha, e de Atenção Especializada, Helvécio Miranda, afirmaram que a PEC, caso aprovada, afetaria políticas públicas de sangue e hemoderivados do país e dificultaria parcerias em curso com o setor privado.

“A PEC aprofunda tudo que a gente não quer no momento atual: um modelo baseado na extração de recursos naturais. Com a aprovação dessa proposta, correremos o risco de extrair o sangue da população brasileira para ser comercializado fora do Brasil. Isso é inaceitável”, disse o secretário do Complexo Industrial da Saúde, em nota.

O ministério afirma estar elaborando estratégias para fortalecer a Hemobrás. O objetivo é de que o país não dependa mais de importação de plasmas até 2026.

Ribeiro diz que mantém diálogos com a oposição, especialistas e com o governo. A expectativa da parlamentar é que a votação seja feita no próximo encontro da CCJ.

— Temos adiado (a votação) toda semana, todo mundo teve tempo suficiente para analisar e contribuir. Eu me coloquei à disposição para conversar no gabinete e tirar dúvidas.