CULTURA

No minimalismo de Tom, Elis dominou seus demônios musicais e chegou à perfeição

Diretor de 'Elis e Tom Só tinha de ser com você' reflete sobre a histórica parceria entre o bossanovista e a cantora

Elis Regina e Tom Jobim em 'Elis & Tom, só tinha de ser com você', de Roberto de Oliveira - Reprodução

Tom Jobim sabia que menos é mais. Dizia que costumava usar pouco o lápis e mais a borracha em suas composições e seus arranjos. O resultado transparece em sua obra irrepreensível.

Frank Sinatra também sabia disso. Começou a se tornar o grande cantor do século XX quando era crooner da orquestra de Tommy Dorsey, onde aprendeu tudo.

Divisão, ritmo e, principalmente, a não desperdiçar notas. Nesse quesito o maravilhoso encontro de Sinatra e Jobim foi uma verdadeira aula. Ao fim da gravação, Sinatra brincou: “Não cantava assim tão suave desde que tive laringite...”.

Quando Tom recebeu Elis em Los Angeles em 1974, para a gravação do histórico “Elis & Tom”, a questão era outra. Ele sabia qual seria seu grande desafio: como domar a explosão do enorme talento de Elis e transformar toda aquela energia no impulso minimalista que atinge de mansinho a inteligência sensorial do público.

Tom gostaria e até tentou que os arranjos do disco fossem escritos por Claus Ogerman ou Johnny Mandel. Só que havia um detalhe: era um projeto de Elis tendo Tom como convidado. Obviamente, isso logo se equilibrou: ninguém dorme com um dragão e acorda igual no dia seguinte.
 

Mas Elis ainda teve tempo de usar sua prerrogativa de indicar o maestro e marido, Cesar Camargo Mariano, como arranjador, o que Tom a princípio aceitou meio contrariado, mas ao final não se arrependeu. Cesar deu conta do recado. Respeitou os acordes de Tom, como Luiz Gonzaga sabiamente reverenciava os sete baixos de Januário, manteve a sonoridade e o estilo dos arranjos já consagrados e ainda introduziu com sucesso a guitarra elétrica e o profano piano Fender Rhodes no santuário daquela celebração da música brasileira, onde Tom a princípio preferia uma “levada” mais acústica em função do repertório escolhido. Mas acabou gostando do resultado dos elétricos, que já utilizara inclusive no lendário álbum “Stone flower”, de 1970.

Cesar também acrescentou sutilmente ao clima bossa-novista que imperava no estúdio uma levada de samba moderno que só ele sabe fazer tão bem, com os apoios luxuosos de Hélio Delmiro (guitarra), Paulo Braga (bateria), Luizão Maia (baixo) e Oscar Castro Neves (violão). O time dos sonhos, reforçado por um excepcional apoio de cordas e flautas dos melhores músicos de L.A., regidos pelo maestro Bill Hitchcock. Tudo sob a marcação cerrada de Tom, que zelava pela suas notas originais com unhas e dentes, como uma mãe protege as suas crias. Foi logo dizendo a Cesar: “Quantos dedos você tem nas mãos? Vinte? Menos, escreve menos...”

Elis nasceu do povo, cantava o que o povo gostava e sua escola foram os grandes cantores do rádio dos anos 1940 e 1950. Seu talento era gigante, era inteligente e sonhava com originalidade no uso de seus enormes recursos.

No âmbito pessoal, trazia dentro dela um sofrimento e uma angústia acumulados em anos de infância modesta, luta pela ascensão artística, assédios de todos os tipos no ambiente profissional. Isso tudo era superado pelo desejo enorme de cantar, cantar, cantar, de ser feliz e fazer as pessoas felizes. Sabia que era perfeita em tudo: voz, ritmo, afinação, divisão, presença cênica, era bonita, fotografava bem. Tinha os atributos que distinguem uma simples artista de uma estrela, categoria a qual pertencia. Mas sentia falta de ter mais prestígio, afirmar sua inteligência e, principalmente, extrapolar seus limites.

Foi quando, através do minimalismo jobiniano, chegou à perfeição. Percebeu logo que atingira seu auge. Cantava no tempo ideal, as palavras fluíam suavemente com a entonação correta, a melodia alcançava o tão almejado efeito mágico que provoca suspiros de prazer. Finalmente dominara seus demônios musicais e rítmicos, controlava todo o processo e reinava soberana no universo musical e cênico que construiu a duras penas. Descobriu finalmente que não é a voz que canta.

Não tinha mais batalhas a travar, podia finalmente se livrar das angústias que carregou por tanto tempo e que mantinham sua alma em constante sofrimento. Agora podia descansar.

*Roberto de Oliveira é diretor de “Elis e Tom – Só tinha de ser com você”