VIOLÊNCIA

"Quando relembram, é como se vivessem tudo novamente", diz advogada de vítimas do caso Camaragibe

Família de grávida e adolescente baleados vivencia momentos de tensão

Caso é acompanhado pela advogada Aline Maciel - Alexandre Aroeira/Folha de Pernambuco

Iniciado na noite da última quinta-feira (14), o drama da família que foi vitimada durante uma ação policial em Camaragibe ainda não tem data para acabar. O caso, que se desdobrou em oito homicídios, atingiu diretamente vidas que não tinham relação com a situação

Além da morte de dois policiais, do suspeito de assassiná-los e cinco de seus familiares, outras três pessoas de uma mesma família sofreram com o desenrolar do caso e agora vivem momentos de angústia. Entre elas, Ana Letícia, que está grávida de sete meses.

De acordo com um dos advogados da mulher, Aline Maciel, o núcleo familiar está sensibilizado.

“A mãe da Ana está muito abalada. Cada vez que eles relembram a situação é como se estivessem vivenciando tudo novamente”, afirmou. 

Com apenas 18 anos, a jovem estava nas casas dos pais quando foi surpreendida pela chegada de Alex Silva, conhecida como Alex Samurai. Naquele momento, o homem, que possuía registro como colecionador, atirador e caçador (CAC), fugia de dois policiais que teriam sido chamados para atender uma ocorrência de disparos de arma de fogo na localidade.

Na tentativa de escapar, Alex teria utilizado Ana Letícia como escudo humano. Durante a troca de tiros do atirador com os policiais, a jovem, que estava com uma criança no colo, foi atingida gravemente por um disparo na cabeça.

A mulher perdeu a visão de um olho e parte da massa encefálica. Ela permanece internada no Hospital da Restauração, onde está entubada e em coma induzido. No momento, o estado de saúde dela e do bebê são considerados estáveis

Além de Ana, outra pessoa da mesma família também foi atingida por um disparo. Um adolescente de 14 anos, que é primo da jovem e estava na residência no momento da ação policial, foi baleado com um tiro na cabeça enquanto tentava socorrer a grávida.

Advogado Jean William acompanha família no caso | Foto: Alexandre Aroeira/Folha de Pernambuco

De acordo com um dos advogados da família, Jean William, o disparo foi efetuado por policiais quando o menino já estava caído no chão. A ação teria sido realizada por PMs que foram até o local como reforço após a troca de tiros inicial que vitimou fatalmente o policial Eduardo Eduardo Roque Barbosa de Santana, de 33 anos, e o cabo Rodolfo José da Silva, de 38 anos.

Jean destaca ainda que apesar de não ter relação com o caso, o menino, que também foi socorrido para o Hospital da Restauração, teria permanecido algemado à maca e cercado por policiais até a chegada dos seus defensores legais. O adolescente recebeu alta nesta segunda.

Na sequência, enquanto a família tentava socorrer Ana Letícia, o carro utilizado pelo pai da jovem para o deslocamento até uma unidade de saúde ainda teria sido perseguido e alvejado por policiais, que só teriam cessado os disparos depois que os familiares da grávida abriram a porta do carro e comprovaram estar socorrendo uma mulher

“O pai dela foi socorrer e quando saiu, uma viatura foi atrás atirando, outra ainda colidiu na lateral pela frente. Ele desceu do carro indignado pedindo por justiça, os policiais ainda deram um tiro para cima. Quando chegaram perto, viram que era uma mulher e tomaram um susto”, afirma o advogado da família. 

A sequência de episódios trágicos continua com o relato do irmão de Ana Letícia, Carlos Augusto. Mesmo sem ter envolvimento direto com o caso, o jovem passou por diversas sessões de tortura naquela quinta-feira (14). 

“Quando a polícia pegou ele, levou até a Arena de Pernambuco. Abriram o capô e pediram para que ele saísse do veículo, deram um golpe com a arma e falaram: ‘Corre’. Nesse momento ele disse: ‘Eu não vou correr porque não fiz nada de errado. Se quiser atirar, pode atirar pela frente’”, detalha Jean. 

Em seguida, o jovem teria sido conduzido pelos policiais para um segundo local, na frente da delegacia de Camaragibe.

“Pediram que ele colocasse a senha do Instagram para que mostrasse a foto do Alex. Como ele estava nervoso e tremendo, não conseguiu acessar a conta e foi agredido mais uma vez com um tapa”.

Uma foto de Carlos dentro do porta-malas também teria sido enviada para um grupo de policiais, descrevendo o menino como o assassino dos PMs. Em um último momento, o jovem foi levado até o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).

“Fizeram um círculo em volta dele, pedindo para que ele colocasse a língua para fora para levar choque. Foi quando uma delegada viu a movimentação estranha e interveio, impedindo que os policiais que ali estavam prosseguissem com o fato. Depois ele foi atendido e as algemas foram retiradas. Ela ficou fazendo a proteção dele e inclusive destacou uma guarnição a dedo, escolhida por ela, de policiais civis para levar ele até em casa”.

Os fatos relatados foram testemunhados nesta segunda-feira (18), data em que todos os familiares presentes no momento da ação policial compareceram ao Grupo de Operações Especiais (GOE) para prestar depoimento. 

FAMÍLIA TEME POR SEGURANÇA
Durante reunião realizada na tarde desta terça, os advogados das vítimas solicitaram ao Governo de Pernambuco a transferência de Ana Letícia para um novo hospital, visando um reforço na segurança da jovem.

Em encontro com um representante da Casa Civil, realizado no Palácio do Campo das Princesas, os defensores da família efetivaram o pedido de transferência alegando que, por ser de referência, o Hospital da Restauração costuma ter uma circulação maior de pessoas, o que poderia colocar a segurança de Ana Letícia em risco. 

“Queremos destacar aqui que os profissionais da Restauração são médicos excelentes. Mas, por conta dessa referência, o entra e sai é muito grande. Esse controle é mais fácil de controlar num hospital particular. Esse é um pedido da família e é nossa prioridade”, afirmou Aline.

O pedido foi protocolado nesta terça e será analisado de forma mais detalhada amanhã, quando os advogados da família deverão se reunir com o secretário-executivo da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, Jayme Asfora. 

Por meio de nota, o Governo de Pernambuco informou que, “desde que tomou conhecimento acerca do caso, a Secretaria Executiva de Direitos Humanos (SEDH) ofereceu atendimento psicossocial e jurídico aos envolvidos por meio do Núcleo de Atendimento Provisório (NAP)”.

A gestão estadual destacou ainda que “as investigações relativas às mortes em Camaragibe estão em curso, através da Secretaria de Defesa Social, sob o comando do Grupo de Operações Especiais (GOE).

Reunião na sede da OAB-PE discutiu o caso | Foto: Alexandre Aroeira/Folha de Pernambuco

CASO SERÁ ACOMPANHADO PELA OAB-PE
Nesta terça-feira, os advogados da família também se reuniram com representantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE. De acordo com o presidente da comissão, Renan Castro, o trabalho de investigação será acompanhado pelo órgão.

“Estamos trabalhando junto à defesa da família para que ela se sinta segura a tomar qualquer tipo de atitude a partir de agora. Há relatos de ameaças de morte que precisam ser levados a sério. A estrutura do Estado e dos programas de proteção de direitos humanos devem garantir que nenhuma vida mais seja ceifada”, destacou.

PERNAMBUCO OFERECE APOIO PARA VÍTIMAS E TESTEMUNHAS
Em entrevista concedida à Folha de Pernambuco, o secretário-executivo da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, Jayme Asfora, que deverá se reunir com os representantes legais da família nesta quarta-feira (20), detalhou os programas de proteção que são oferecidos no estado. 

“A secretaria tem vários programas de proteção e promoção dos direitos humanos. Se for do interesse da pessoa, que tem que expressamente aceitar as regras do programa, ela pode ser protegida pelo estado em uma sede sigilosa”, afirmou.

Além desse, outros duas opções estão disponíveis para vítimas e testemunhas. A primeira delas é destinada para adultos, enquanto a segunda iniciativa visa a proteção de crianças e adolescentes.

“São programas patrocinados pelo Governo Federal, que banca a maior parte, mas nós bancamos uma parte. Cada um tem uma coordenação específica”, concluiu Jayme.