BRASIL

Estresse térmico: 38 milhões passam quase um mês por ano sob calor superior ao que o corpo aguenta

Primeiro estudo de avaliação de bioclimatologia da América do Sul revela que, a cada ano, os períodos de estresse térmico ganham dez horas extras; análise é da Lasa/UFRJ

Calor no Rio de Janeiro - Tomaz Silva/Agência Brasil

A onda de calor que assola quase todo o Brasil faz parte de uma escalada sem fim à vista. Ano após ano, aumenta o tempo que os brasileiros são expostos ao chamado estresse térmico, condição de risco de saúde. Mais que 38 milhões de pessoas, habitantes de Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e outras dez cidades com população acima de um milhão, passam até 25 dias por ano sob condições meteorológicas superiores às que o corpo humano pode suportar sem que fique exposto a problemas que podem ir além do mal-estar e incluem ataques cardíacos, agravamento de câncer, diabetes e depressão.

Os dados fazem parte do primeiro estudo de avaliação de bioclimatologia de toda a América do Sul nas últimas quatro décadas. Ele revela que, a cada ano, em média, os períodos de estresse térmico ganham dez horas extras nas cidades analisadas no Brasil. A escalada de aumento do estresse térmico começou há 20 anos, acompanhando as mudanças climáticas.

O trabalho foi coordenado por Renata Libonati, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), e teve a participação de cientistas de instituições de Argentina, Espanha, Portugal e Venezuela. Apoiado pela Faperj e o CNPq, o estudo será publicado na revista científica internacional Theoretical and Applied Climatology. e tem como primeiro autor Vitor Miranda.

O estudo investigou dados de 31 cidades da América do Sul, 13 delas no Brasil. O critério de escolha foi ter mais de um milhão de habitantes pela representatividade populacional. As cidades brasileiras são Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Manaus, Belém, Goiânia, Porto Alegre, Curitiba e Campinas.

Porém, observa Djacinto dos Santos, um dos autores do estudo, o número de brasileiros expostos ao estresse térmico certamente é muito maior do que a amostra analisada.

— A tendência de aumento é geral e as pessoas sofrem de 17 a 25 dias por ano de estresse térmico, é muita coisa — afirma Santos.

Como o critério foi o tamanho da população, ficaram de fora, por exemplo, Nova Maringá (MT, com 5.846 habitantes) e Bom Jesus (PI, com 28.799). As duas registraram as temperaturas mais elevadas do Brasil. Nova Maringá ferveu com 44,8C, em 2020. E Bom Jesus derreteu a 44,7C, em 2005. Recordes que podem ser batidos hoje ou nos próximos dias.

— O número anual de horas sob estresse térmico aumentou significativamente em todas as zonas climáticas do continente durante o período de 1979 a 2020. No Brasil, todas as cidades estudadas apresentaram tal tendência — frisa Libonati.

Em grandes capitais, com menos de 1 milhão de habitantes, como Teresina, no Piauí, a situação já é crítica. Junilly Cavalcante, de 22 anos, diz que os moradores evitam sair sob o sol escaldante e costumam trocar o dia pela noite para muitas tarefas obrigatórias. Isso, em geral, acontece nos meses conhecidos como “bro”, em referência a terminação das palavras setembro, outubro, novembro e dezembro, quando o caldeirão ferve:

— Quando esse período começa, evito sair de casa e só vou a lugar com ar-condicionado. Tô fora de andar na rua, ir a parque — diz a jovem, que convive com as consequências como tonturas,enxaquecas e até desmaios.

Na pesquisa, o maior aumento, de 13 horas anuais, foi de Fortaleza e Goiânia. Mas Brasília, Campinas, Manaus e Belo Horizonte não ficaram muito atrás, com 10 horas. Em São Paulo e Rio de Janeiro a tendência foi de 6 horas em estresse térmico a mais a cada ano. Em Belém e Curitiba esse valor foi de 4 horas/ano e 2 horas/ano, respectivamente.

A avaliação de estresse térmico não se refere apenas à temperatura. Os pesquisadores usam um índice que mede o conforto fisiológico do corpo sob determinadas condições meteorológicas. Isto é, não apenas o que diz o termômetro, mas o que as pessoas sentem.

O Índice Climático Térmico Universal (UTCI, na sigla em inglês) considera também a umidade do ar, o fluxo de radiação solar recebida e a velocidade do vento. Em conjunto, elas afetam a forma como o nosso corpo reage às condições do ambiente externo.

O calor extremo é sempre ruim, não importa se úmido ou seco. Mas os efeitos da umidade o fazem se manifestar de formas diferentes. A umidade elevada impede que o suor _ nossa principal forma de defesa do calor — evapore e o mantém na pele. Por isso, a sensação é pior.

No entanto, salienta Santos, a baixa umidade do ar, além de trazer desconforto respiratório, faz com que a onda de calor dure mais ao reduzir a chuva, que aliviaria a temperatura. A seca alimenta o calor e o calor aumenta a seca. É um sistema que se autoperpetua. E é uma onda dessas que está nesse momento ativa no Brasil.

Os pesquisadores destacam que o calor extremo é um desastre negligenciado, cujos efeitos precisam começar a ser medidos. É um inimigo invisível, que adoece e mata mais devagar do que uma tempestade, mas capaz de afetar um número muito maior de pessoas.

Santos acrescenta que as ondas secas como esta costumam ser acompanhadas nas cidades por ondas de poluição. A temperatura e a radiação elevadas provocam reações químicas que aumentam a concentração de ozônio e poluentes particulados derivados de emissões de veículos e das indústrias. A falta de chuva os concentra nas cidades.

— São eventos combinados, uma onda de calor gera e alimenta uma onda de poluição. Esses extremos já estavam aumentando devido às mudanças climáticas e esse El Niño só veio tornar tudo pior — diz Santos.

Os cientistas destacam a necessidade de políticas públicas de adaptação e proteção.

— O calor expõe a desigualdade. Pessoas que trabalham expostas ao livre, passam horas em transporte sem refrigeração, vivem em ambientes mal ventilados sofrem muito mais — enfatiza Santos.

Libonati destaca a necessidade de ter estratégias adequadas à realidade brasileira. Aqui, onde as escolas oferecem as únicas refeições de muitas crianças, suspender aulas não é a solução. O fundamental seria garantir refrigeração.

A Organização Mundial de Saúde considera o acesso a ambientes refrigerados a forma mais eficiente, embora controversa, de aliviar o calor extremo. Porém, no Brasil, apenas 13,91% dos domicílios dispõem de ar condicionado, segundo a Pesquisa de Posse e Hábitos de Uso de Equipamentos Elétricos de Classe Residencial, da Eletrobras.

E não basta ter um aparelho. É preciso poder pagar a conta de consumo. Se o termômetro marca 35C, para manter um ambiente a 24C, um aparelho precisará, em média, de 30% a mais de energia. E isso se refletirá na conta de luz.

Os números do alerta dado pela ciência se traduzem no sofrimento quem não pode fugir do calor. A pedagoga Débora Félix, de 30 anos, dá aulas para turmas de alfabetização na rede pública do Distrito Federal. Sem ar-condicionado, ela vê os alunos mais dispersos e agitados.

— Está sendo horrível, porque as escolas, em geral, não têm uma boa estrutura. As crianças se queixam de dor de cabeça, de barriga, não conseguem se concentrar — lamenta Félix.

Uma das mais experientes cientistas na ecologia do Pantanal, Solange Ikeda, da Universidade do Estado de Mato Grosso, mora em Cáceres, neste momento um dos lugares mais quentes da Terra e um dos epicentros da onda de calor. Ikeda cancelou o trabalho de campo esta semana para não expor a equipe.

— Uma coisa é calor, a outra são essas temperaturas intoleráveis. É impossível se acostumar a esse tipo de calor. Sempre tem gente que passa mal em campo, mas agora nem sei o que poderia acontecer. O calor prejudica nossa saúde e o nosso trabalho — explica ela.

Após bater o recorde de temperatura do ano no último dia de inverno, com 34,7C na sexta-feira, São Paulo entrou na primavera ainda mais quente. A maior das metrópoles do continente é o retrato de um país que esquenta a cada ano. Seus habitantes materializam em carne osso métricas e números dos estudos científicos sobre os horrores do calor intenso.

Em situação de maior risco devido à idade, Aparecida Avelar, 75 anos, faz o que pode para aguentar a nova realidade da cidade de São Paulo. Como a maioria dos brasileiros, ela não tem ar condicionado e reclama que o calor “está sufocante” e que já acorda se sentindo mal e cansada:

— A gente tem que usar vários artifícios. Banho gelado, muita água, e procurar sombra.

Mas, sob um céu azul sem nuvens, ela vislumbra um futuro sombrio:

— Pela minha idade, eu acho que não vou chegar a ver, mas acho que vai pegar fogo no planeta. Nunca tinha visto esse calor todo nessa época do ano. Não tenho ar condicionado, tenho um ventilador de teto e um de chão, normalzinho, tem que ficar ligado o tempo todo.

Nem a proximidade do gelo que carrega em seu carrinho cheio dos picolés que vende alivia o desconforto de Francisco Santos, de 60 anos, que percorre as ruas do Centro de São Paulo.

— Ando bastante, fico parado em lugares por uma meia hora, mas depois ando novamente. Eu me viro me hidratando, tomando um sorvete, bebendo bastante água. E tentando sempre ficar parado na sombra quando dá. Em casa, é ainda mais quente, o ventilador fica ligado o tempo todo — conta.

Santos está preocupado com as mudanças climáticas e acredita que o calor só tende a piorar nos próximos anos.

— Não sei até quanto tempo vou chegar, mas me preocupo com futuro dos jovens, das crianças, porque esse calor é muito fora do normal — afirma.

O fotógrafo Eliasibe Rosa de Lima vai ao Anhangabaú todas as sextas-feiras para revelar fotos na região, e tenta se proteger usando um chapéu e bebendo muita água. Ele culpa a destruição ambiental pelo calor excessivo e lamenta a falta de perspectiva de alívio.

— Não tenho ar condicionado em casa, só se hidratando muito, tentando ficar na sombra, mas não tem jeito — diz.