MUNDO

Ataques a cristãos aumentam na Terra Santa

Intolerância contra minoria religiosa em Jerusalém registra ao menos 80 episódios neste ano e, de acordo com vítimas, piorou com entrada da extrema direita no governo

Polícia montada de Israel observa protesto contra a reforma do Judiciário, em Tel Aviv - Gil Cohen-Magen/AFP

Dentro da sala de teto de abóbadas onde recebe os peregrinos armênios na Igreja do Santo Sepulcro, o padre Samuel Aghovan é amado. Sentados em cadeiras de pedra incrustadas na parede, homens e mulheres de véu branco na cabeça que viajaram até Jerusalém para conhecer a Terra Santa se divertem com seu jeito descontraído. O padre abraça os fiéis, dá conselhos. Eles dão risada. Ao final, pedem selfies. Do lado de fora, a popularidade do padre muda. Há uma semana, enquanto caminhava pelas ruas de pedra ao lado do também armênio padre Arbag, os dois foram alvo de uma cuspida, capturada em vídeo pelas câmeras de segurança.

—Estávamos andando juntos para o patriarcado. Eu não vi, o que ele [Arbag] me falou é que um judeu ortodoxo radical cuspiu para insultar os cristãos — diz o superior da Igreja armênia no Santo Sepulcro, de túnica preta e barba branca comprida, sentado na sala de paredes de mosaico e imagens da Virgem Maria segurando o Menino Jesus, que ainda cheirava a incenso quando O GLOBO chegou. — Isso vem acontecendo há décadas. Eles dizem que nós temos que prestar queixa. Mas isso acontece centenas de vezes, milhares, provavelmente. Nós reclamamos, mas nada muda.

Nas ruas da Cidade Velha, os ataques — como cuspidas, agressão verbal, empurrões nos clérigos e peregrinos cristãos — e vandalismo contra os prédios da Igreja são comuns. Os padres com quem O GLOBO conversou dizem que as cuspidas acontecem todos os dias, às vezes várias vezes. Cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, Jerusalém é alvo de disputas políticas, territoriais e sociais que afetam a vida dos que vivem e trabalham ali.

Especialistas afirmam que ataques perpetrados por grupos israelenses radicais contra cristãos sempre aconteceram, mas que, recentemente, aumentaram. O Centro para Dados sobre Liberdade Religiosa, organização fundada em junho pelo israelense Yisca Harani, afirma que recebeu denúncias de 80 ataques desde janeiro. Um relatório lançado neste mês estima que outras dezenas podem ter ocorrido sem serem denunciados — Não há comparação com outros anos pois a entidade começou a compilar os dados agora após perceber o aumento de casos mais graves.

Segundo o documento, de agosto até 12 de setembro, foram oito incidentes de vandalismo, como danos a propriedade e pichação, oito de cuspidas contra clérigos ou lugares religiosos, dois incidentes de abuso verbal e físico que incluem xingamento e empurrões, dois de recusa de serviço ou entrada a locais e um de tentativa de apropriação de local religioso.

Radicais fortalecidos
O padre Nikodemus Schnabel, da comunidade beneditina, acredita que o crescimento da violência está relacionado ao fato de que o governo de extrema direita formado por Benjamin Netanyahu em 2022 abrigar membros mais radicais da sociedade israelense.

— Este não é um fenômeno novo. O que é novo é que esses odiadores de cristãos, esses hooligans religiosos, são agora parte do governo, e isso traz grande impacto — diz o abade da Abadia da Dormição em Jerusalém. — Em 2015, tivemos um ataque horrível, um incêndio, por esses extremistas judeus nacionalistas que odeiam tudo que não é judeu. Eles tentaram queimar nosso monastério, foram pegos e julgados, e o advogado desses extremistas foi o advogado mais horrível que já vimos. Ele foi punido pela própria corte porque não estava se comportando direito.

O advogado era Itamar Ben-Gvir, atual ministro da Segurança Nacional do governo, um dos líderes mais populares da extrema direita nacionalista israelense, a frente do partido Poder Judaico.

A preocupação das organizações que defendem a liberdade religiosa é garantir a continuidade da presença cristã em Jerusalém.

Jerusalém Oriental, onde fica a Cidade Velha, foi ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Atualmente, o controle da cidade está sob o governo de Israel, embora essa soberania não seja reconhecida pela maioria dos países, já que tanto palestinos quanto israelenses disputam a cidade como capital.

A polícia afirma que leva a sério todas as denúncias feitas e investiga todos os casos que chegam às autoridades.

— A polícia de Israel é para todos. É uma força policial composta de membros de diferentes contextos e maneiras de ver a vida. Eles todos têm o mesmo objetivo, no entanto, que é garantir a segurança e a paz do público. Temos muitos oficiais, sobretudo na Cidade Velha, que eles mesmos são cristãos. Há esse entendimento errado de que a polícia de Israel é uma polícia judaica, o que é totalmente incorreto — diz o porta-voz da polícia de Israel, Dean Elsdunne. — Condenamos os atos contra as comunidades cristãs e os vemos como escandalosos. Levamos todas as ofensas criminais a sério. Enfatizamos que haverá zero tolerância para esses ataques.

Os líderes religiosos dizem que a reação não é suficiente.

— Eles ligam para a pessoa, dizem que ela fez algo errado, ela pede desculpas, mas não há punição. Por isso que continuam fazendo — diz o padre armênio Samuel. — É preciso educar as pessoas que estão fazendo isso para fazê-las entender que não se pode insultar pessoas por elas serem de religião diferente da sua. Eles não querem nos ver aqui.

Um dos ataques deste ano foi contra a estátua de Jesus Cristo da Igreja da Flagelação, um dos pontos da Via Dolorosa, em fevereiro. Um turista americano foi preso, acusado de derrubar a estátua no chão. Um vídeo que viralizou na internet mostra o guarda imobilizando o turista de cerca de 40 anos no chão, ao lado da estátua quebrada.

— Ele jogou a estátua no chão e começou a destruí-la com um martelo — diz o frei Matteo Munari, da Igreja da Flagelação, que confirma que os ataques têm aumentado. — Para a religião judaica, toda estátua é como um ídolo, algo que vai contra a pureza da religião. É por isso que para esse homem é importante destruir todas as estátuas de Jerusalém.

Visita do presidente
No dia 8 de setembro, o centro registrou uma pichação na porta de uma casa cristã da Cidade Velha de Jerusalém que dizia: “Ben-Gvir esteve aqui”.

Os ataques têm chamado tanta atenção da mídia israelense que o presidente do país, Isaac Herzog, visitou um dos lugares atacados — desta vez em outra cidade, Haifa, no Norte de Israel.

— Em meses recentes, temos testemunhado um fenômeno extremamente sério no tratamento de membros das comunidades cristãs na Terra Santa, nossos irmãos e irmãs, cidadãos cristãos, que se sentem atacados, em seus lugares de reza e seus cemitérios, nas ruas — disse Herzog em agosto, durante visita ao Monastério Stella Maris em encontro com lideranças cristãs. — Isso é totalmente inaceitável em todos os aspectos.

No fim de julho, dezenas de peregrinos judeus do movimento hassídico, uma linha do judaísmo ortodoxo, entraram em confronto com fiéis cristãos no monastério. O confronto deixou feridos e levou ao fechamento da rua que leva até o local.

Sem antissemitismo
Por causa do histórico de antissemitismo por instituições cristãs ao longo da História, líderes do movimento contra os ataques escolheram usar o termo “grupos israelenses radicais” para se referir aos perpetradores e focam no fato de que é um grupo minoritário e restrito de ortodoxos os perpetram.

— É um tema muito sensível, o ódio de alguns judeus contra o cristianismo, porque ao longo da História eles sofreram perseguição pelos cristãos — diz o frei Matteo. — É importante dizer de que parte vem o ódio, por que este ódio existe, e tentar curá-lo. É interessante porque aqui as pessoas que são as mais interessadas em combater esse tipo de fenômeno [ataques a cristãos] são também judeus. Falo com muitos amigos judeus que dizem que isso não pode ser aceito e que querem fazer algo. Há muitos judeus mais interessados em lutar contra esse ódio do que cristãos.