"Caso deveria ter sido federalizado o quanto antes", diz Raquel Dodge sobre assassinato de Marielle
Ex-procuradora-geral da República, à frente do cargo na época do assassinato da ex-vereadora, diz que novas suspeitas sobre Domingos Brazão não a surpreenderam
As novas suspeitas contra o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) Domingos Brazão não surpreenderam a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, que ocupava o posto na época do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em março de 2018.
Neste domingo, a coluna de Bernardo Mello Franco mostrou que o inquérito que apura o assassinato da vereadora e do motorista Anderson Gomes saiu do Rio de Janeiro e foi enviado ao STJ diante do surgimento de novas suspeitas sobre Brazão.
Ao Globo, a subprocuradora-geral da República, que denunciou Brazão ao STJ em 2019 por tentativa de embaraçar as investigações no caso Marielle, afirma que já naquela época havia indícios da participação do conselheiro do TCE-RJ no crime contra a vereadora.
— Naquela época já havia indícios de que ele (Brazão) participara do crime em si. E eu suspeito que agora é o que está voltando ao STJ —afirma.
De acordo com Dodge, com esse fato novo, o STJ irá, ao lado da Procuradoria-Geral da República (PGR), analisar os elementos apresentados para saber se, de fato, o caso deverá permanecer sob a competência da Corte.
Segundo o colunista Bernardo Mello Franco, Brazão voltou à mira da Justiça após a delação premiada do ex-PM Élcio Queiroz. Num trecho que já veio a público, ele confessou ter dirigido o carro usado no ataque e confirmou que Ronnie Lessa foi o autor dos disparos.
A Constituição Federal estipula que membros dos tribunais de contas dos estados sejam processados pelo STJ. Mas o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) determina que essa prerrogativa deve valer apenas quando os eventuais crimes tiverem sido cometidos no exercício do cargo. Por isso é que o tribunal irá decidir, ainda, se o caso deverá seguir sob a sua tutela — ou se deverá seguir para a primeira instância, como ocorreu com a denúncia apresentada por Dodge.
Em 21 de março deste ano, após o caso sair do STJ, a Justiça do Rio de Janeiro rejeitou a denúncia contra o conselheiro do Tribunal de Contas pelo crime de obstrução de Justiça na investigação das mortes da vereadora e do motorista. A decisão foi do juiz Andre Ricardo de Franciscis Ramos, da 28ª Vara Criminal.
— Quando estive à frente da PGR, tomei duas providências em relação ao caso Marielle: uma em decorrência de competência por prerrogativa de função, no caso do conselheiro do TCE, e outra em razão da federalização, por meio do incidente de deslocamento de competência. Na ocasião, a minha compreensão era a de que o sistema de Justiça do Rio de Janeiro não estava conseguindo processar e julgar o caso e, por isso, a federalização, ou seja, a ida para a Justiça Federal, era o melhor caminho — aponta.
A solicitação de Dodge, para a federalização, no entanto, foi negada pela Terceira Seção do STJ em maio de 2020. Na época, a relatora do caso, ministra Laurita Vaz, defendeu a manutenção do caso sob a competência da Justiça estadual, da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Para ela, não era possível verificar "desídia" ou "desinteresse" por parte das autoridades estaduais nas investigações para solucionar o crime.
Quando o crime completou cinco anos, em março deste ano, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou a entrada da Polícia Federal nas investigações sobre o assassinato de Marielle e Anderson. A medida, no entanto, não configura formalmente a federalização, mas sim, segundo esclarece a ex-PGR, uma competência natural da PF para atuar em casos de repercussão nacional mesmo que em se tratando de um crime "estadual". A disposição está no artigo 144 da Constituição.
Passados cinco anos do crime ainda sem respostas, a subprocuradora-geral segue entendendo que a federalização da investigação sobre o assassinato de Marielle e Anderson teria sido a melhor solução.
— Minha avaliação segue a argumentação que defendi no incidente de deslocamento de competência perante o STJ. Esse caso deveria ter sido federalizado o quanto antes. A federalização era a melhor saída para esse caso e a evidência era muito simples. Toda as vezes que comissionamos à Polícia Federal para atuar, o caso avançou — disse.
Dodge relata que enquanto esteve à frente da PGR enfrentou diversos obstáculos para obter acesso à investigação do caso Marielle e Anderson, mesmo tendo sido ela a requisitar os inquéritos. Após cinco anos dos assassinatos, e ainda sem uma conclusão sobre quem mandou matar a vereadora, a ex-PGR se diz "pessoalmente muito frustrada".
— Eu pessoalmente fico muito frustrada. O crime contra Marielle foi e é um crime contra a democracia. Não assassinaram uma vereadora qualquer, ela era uma mulher que tinha uma pauta muto clara e eu mandei imediatamente preparar a portaria da federalização por isso. Minha ida ao Rio (no dia seguinte ao crime), como PGR, sinalizou muito claramente a importância do caso — relata.
O pedido de federalização do caso Marielle feito por Dodge ocorreu às vésperas do final de seu mandato à frente da PGR, em 2019. Segundo a subprocuradora, em razão das inúmeras dificuldades de acesso que ela teve aos documentos, o que incluiu uma fraude via Correios.
— Não se pode assassinar deputados, parlamentares e ao assassinar Marielle estavam assassinando e calando uma parte da população. Naquele dia eu percebi que era disso que se tratava. Não ver esse crime esclarecido, para mim, é uma evidência de que as forças que operam tudo isso estão prevalecendo — afirma.
Citado no relatório da CPI das Milícias, Brazão é chefe de um clã que inclui o deputado federal Chiquinho Brazão, o deputado estadual Manoel Brazão e o vereador Waldir Brazão, um agregado que adotou o sobrenome para fins eleitorais.