Dia do Nordestino: conheça a história do cuscuz, um dos alimentos que mais simbolizam o Nordeste
Consumido em praticamente todo o território nacional com variações na maneira de fazer e nos ingredientes em cada localidade, foi a receita com flocos de milho, que que mais criou identidade com a região
Apesar de ter sua criação atribuída aos mouros do norte da África, na pré-história, o cuscuz introduzido no Brasil pelos colonizadores portugueses se tornou, ao longo dos anos, um símbolo afetivo da cultura nordestina. Consumido em praticamente todo o território nacional com variações na maneira de fazer e nos ingredientes em cada localidade, foi a receita com flocos de milho, que que mais criou identidade com a região Nordeste, o nosso cuscuz nordestino.
As variações do alimento no mundo têm em comum o modo de preparo: os flocos são hidratados e descansam por alguns minutos. Em seguida, essa massa vai para o banho-maria, onde é cozida no vapor. No caso do cuscuz nordestino, o resultado é um alimento amarelinho, fofinho e quente, frequentemente acompanhado de manteiga, queijo coalho ou carne de charque, receita que quem mora no Nordeste conhece bem.
“O Nordeste carrega dois elementos da base alimentar indígena, o milho e a mandioca. E isso é muito claro pelo fato da colonização ter se dado na necessidade do alimento que o indígena consumia. Por isso que quando se começa a fazer o cuscuz aqui - lembremos que ele era a base alimentar do norte da África em um nível de importância que tinha o arroz para o oriente e o milho para as Américas - os invasores no Brasil se depararam com esses ingredientes e começaram a utilizá-los. Assim, o cuscuz acabou saindo dentro dessa integração”, explica Robson Lustosa, professor e coordenador do curso de Gastronomia da Faculdade Senac.
Origem do cuscuz
O prato já existia dois séculos antes de Cristo, na região do Maghreb - que hoje é composta por cinco países: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Saara Ocidental e Mauritânia, ao norte do continente africano. A criação do cuscuz é atribuída aos mouros berberes, grupo nômade que habita a região do deserto do Saara desde a pré-história que buscavam a facilidade de preparar e transportar o alimento.
O primeiro registro de quem se tem notícia sobre o prato foi escrito em um livro de culinária magrebina, no século XIII. A palavra “k’seksu”, em berbere, reproduz o som do vapor na cuscuzeira durante o cozimento.
Ao longo dos séculos, o cuscuz foi sendo incorporado à cultura dos árabes que chegaram a ocupar parte da Europa. Mesmo depois da expulsão desses povos dos países europeus, o prato permaneceu popular e acabou levado para os territórios colonizados por franceses, espanhóis e portugueses.
Foi introduzido na Península Ibérica - formada por Espanha e Portugal - e logo incorporado à cultura desses dois países, adaptado para se tornar o que se chama “cuscuz marroquino”, apesar de ser visto em outros países do norte africano, feito com uma mistura da farinha ou sêmola do trigo.
Na França, as primeiras referências ao insumo são do século XVII. O cuscuz ou “couscous”, como é conhecido pelos franceses, foi eleito como o terceiro prato mais popular do país em 2011 e é muito difundido, sobretudo no Sul. O alimento também tem papel de destaque na cultura dos árabes, em especial na Síria e na Palestina, onde foi modificado e recebeu o nome de maftoul, feito com farinha de trigo duro esfregado e moldado até virar o chamado cuscuz pérola.
Cuscuz no Brasil
Depois de se popularizar em Portugal, o cuscuz foi trazido ao Brasil pelos colonizadores e por aqui se tornou base da alimentação de negros, preparado por escravos e vendido em tabuleiros no período colonial. Mesmo diante das transformações sociais, ao longo dos séculos, o cuscuz continuou sendo um dos principais alimentos da base da pirâmide social brasileira, não por acaso, com ênfase no Nordeste, região onde se concentram as maiores desigualdades sociais do país e onde podemos encontrar o prato presente nas refeições diárias, sobretudo nas periferias.
O primeiro cuscuz como conhecemos que foi feito no Brasil usava grão de milho pilado e depois embebido em água e cozido no vapor, diferente do cuscuz berbere, que não era produzido de um grão quebrado, mas consistia em uma massa esfregada e hidratada com água, método também muito comum na região de Trás dos Montes, em Portugal, e ficou conhecido como “cusco”. Ele levava o mesmo processo do “k’seksu” feito pelos países do Maghreb.
Apesar de ter sido trazido pelos portugueses com os ingredientes e método que conhecemos, os indígenas amazônicos já faziam cuscuz a partir da farinha de uarini, ou ovinha, que ficou mais conhecida através na pesquisa culinária do chef Alex Atala, que batizou essa preparação de “cuscuz da Amazônia”. Apesar de feito com mandioca, o alimento tem a textura parecida com o cuscuz de milho comum.
A evolução do preparo
No livro “História da Alimentação no Brasil”, o etnólogo Luís da Câmara Cascudo define o cuscuz como “a massa de milho, pilada, temperada com sal, cozida ao vapor d’água e depois umedecida com leite de coco. Com ou sem açúcar”. Para realizar esse cozimento, foram desenvolvidos métodos rudimentares até chegar à maneira como fazemos hoje.
O “cuscuz de cabeça virada”, por exemplo, era uma prática de quando não ainda não havia cuscuzeira e possivelmente foi a primeira forma que se preparou o alimento no Brasil. Pegava-se um prato, colocava-se o milho hidratado nele, amarrava-o com um pano e aí virava-se ao contrário em cima de uma panela com água fervendo e lá ele ficava cozinhando.
Depois, foi introduzida a cuscuzeira, que era chamada de couscoussier pela francofonia da cozinha magrebina, que tinha o mesmo formato e semelhança com as que usamos no Brasil. E as cuscuzeiras de barro com a forma abaulada são as que mais se parecem com as encontradas no Marrocos, Tunísia e demais países do Maghreb.
Cuscuz, afeto e resistência
“Se ele é uma preparação culinária que pode representar esse conceito da cozinha da escassez, o cuscuz também é utilizado como um alimento totem, como um signo do Nordeste por ser amplamente consumido por todos os povos da região e serve para expressar no que aquele povo se distingue, não só pelas suas práticas e saberes, mas pela forma como se come. Os nordestinos partilham dessa identidade e dessa igualdade, desse caráter de pertencimento que o cuscuz consegue produzir”, avalia o professor Robson Lustosa.
Muito além das técnicas de preparo e da sua origem, a liturgia em tono de comer uma refeição de cuscuz está no imaginário do nordestino. “Ele entra no circuito afetivo. O cuscuz se consome em coletividade, dentro do conceito da comensalidade em que as pessoas estão em convívio em torno da comida. Se o cuscuz era a base para o momento de almoço, mesmo diante da escassez, há a comensalidade ali, A família está comendo junto. A cuscuzeira produz para vários uma comida de coletividade”, pontua Lustosa.
Por ser uma comida que foi criada para partilhar em família, o cuscuz está presente na memória e no imaginário por gerações. “A teia de afetos que une todos à mesa, no almoço de cuscuz, é reveladora da cumplicidade entre os intervenientes. A espontaneidade da conversa que se desenrola durante a refeição permite construir as relações afetivas que os unem. A conversação resulta como uma prática de convivialidade, herança de tempos passados e também fenômeno quotidiano, transversal aos diferentes grupos sociais, com graus diferentes de relevância e permanência”, destaca trecho do artigo “O segredo de um cuscuz: alimentação e identidade”, da pesquisadora Guida da Silva Cândido, doutoranda em Patrimónios Alimentares: Culturas e Identidades na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Patrimônio da humanidade
Em dezembro de 2020, durante videoconferência do Comitê de Patrimônio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o alimento foi reconhecido como Patrimônio Imaterial da Humanidade, salvaguardando toda a tradição relacionada à prática, ao preparo e ao seu consumo, assim como os conhecimentos ligados a esta tradição de consumo em celebrações, festas, cerimônias e no cotidiano de países como Argélia, Marrocos, Tunísia, Líbia e Mauritânia.