Dia do Nordestino: da imigração maciça, um novo fluxo de artistas revela a diversidade cultural
Desde os anos 1960 e 1970, o movimento de artistas do Nordeste rumo ao Sudeste revela o quanto a pluralidade da nossa região precisa de espaço e oportunidades para se revelar ao Brasil
Um movimento que, de certa forma, já se naturalizou na dinâmica brasileira é o êxodo de nordestinos para o Sudeste. Em busca de melhores oportunidades, muitos deixaram (e ainda deixam) seu lugar para tentar a vida em outra região. No campo da música, esse movimento também é marcante.
Especialmente nas décadas 1960 e 1970, podemos apontar alguns exemplos relevantes desse intenso fluxo: os baianos que fizeram a Tropicália – Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, além de Maria Bethânia –, o chamado “Pessoal do Ceará – Belchior, Amelinha, Ednardo, além de Fagner –, assim como os pernambucanos Alceu Valença, Geraldo Azevedo, os paraibanos Elba e Zé Ramalho, Cátia de França.
Nos tempos de hoje
Nas últimas décadas do século passado, esse fluxo migratório continuou acontecendo, mas, de forma mais pulverizada, fragmentada – podemos citar Lenine (PE), Chico César (PB), Zeca Baleiro (MA), nos anos 1980; pernambucanos do Manguebeat, como Chico Science & Nação Zumbi, nos anos 1990, Siba (com Mestre Ambrósio), nos anos 2000; o cearense Fernando Catatau (com Cidadão Instigado).
Essa tendência seguiu no atual século e, ainda hoje, artistas nordestinos continuam rumando para o Sudeste. O soteropolitano Giovani Cidreira vive em São Paulo. Diretamente do bairro de Valéria, periferia de Salvador, ele esteve na Paulicéia em 2015 e 2016, quando se preparava para lançar o seu disco “Japanese Food”, contemplado pelo edital da Natura Musical.
“Nesse momento, eu percebi que (em São Paulo) tinha selos (de música), que existia assessoria de imprensa, coisas que não chegam pra gente da periferia, e ainda mais nordestino, né?”
Mesmo com o disco lançado, ainda havia dúvidas sobre arriscar-se em São Paulo ou não. “Apesar de tudo, de já ter ganhado prêmio, estar com o disco na mão, eu não me sentia com clareza e segurança suficiente de que música era o meu lance”, conta. “Apesar de já ter ido em 2015, em 2016, e fazer um rolê, quando você chega no seu lugar, tem suas demandas, precisa botar comida na mesa”.
Foi a mãe de Giovani que lhe falou: “Melhor você ir fazer o que você quer do que você morrer igual a muitos da gente, com o sonho abafado, com o sonho mastigado”, lembra. Em 2017, fixou-se na cidade. Então, ele desbravou Sampa e foi atrás de construir sua história.
“Primeiro, fiquei morando na casa dos outros, morando em vários sofás”. Mas, conseguiu achar um caminho a seguir. Atualmente, Giovani possui quatro álbuns lançados e excursiona Brasil afora, mesmo que ainda no esquema independente, mas, com muito mais estrutura e suporte do que se ainda estivesse em Salvador.
“São Paulo não é exatamente uma cidade dos paulistas. É uma cidade que tem muita gente de todo canto lá”, diz Giovani, que procurou também se cercar de pessoas de outros lugares do Brasil que não necessariamente São Paulo, também como uma forma de driblar as adversidades. “Sempre há algum preconceito com quem é de fora, baiano, preto. Existe uma falsa cordialidade. Eu sei que em alguns lugares eu sou aceito porque tô com um violão na mão, porque conheço A, B ou C, mas eu sempre superei isso”, conta.
“A minha música foi bem acolhida em SP. Eu sempre me senti meio peixe fora d’água em Salvador, talvez porque minha música não tava muito ligada a essa coisa da festa, do Carnaval (...) esteticamente, artisticamente, eu me afinava com as pessoas que estavam em SP”, destaca Giovani.
“Eu tô em São Paulo por conta de trabalho mesmo. Você sabe que a grana tá no Sul. A grana, as pessoas que consomem. A minha cidade que eu gosto mesmo é Salvador, a Bahia”, exalta.“Enquanto eu puder estar perto da praia, da natureza, da minha natureza, com meu Oxóssi, eu estarei”, diz Giovani, que, atualmente, se alterna entre temporadas em São Paulo e em Salvador.
De Juazeiro para a Paulicéia
Também baiana, de Juazeiro, a cantora e compositora Josyara botou os pés na Paulicéia pela primeira vez, em 2014, aos 22 anos. “Vim acompanhando uma ex-namorada para um congresso estudantil”, lembra. Foi passar uma semana, acabou se estendendo por dois meses, fazendo contatos. “Naquela semaninha, eu queria tentar, sei lá… na minha cabeça de novinha, tentar conhecer algum músico, naquela esperança de que ia achar alguma coisa… e acabei achando”, lembra.
Depois disso, foi à terra natal buscar suas coisas e ir de vez para Sampa. “Fui sozinha, não tinha banda, mas fui conhecendo as pessoas, fazendo o que eu tava querendo. Em pouco tempo, eu já tava fazendo barzinho, tocando com músicos daqui”.
Josyara toca profissionalmente desde os seus 15 anos de idade – quando recebeu seu primeiro cachê. Já teve uma banda de rock, chamada Psíncope. Como artista solo, ela assinava Josy Lélis. Com um disco, “Uni Versos”, lançado em 2012, com patrocínio da Petrobras, tocava em barzinhos e casas noturnas em Salvador, no interior do estado – Bom Jesus da Lapa, Irecê, Juazeiro etc.
Hoje, com três álbuns (um deles dividido com Giovani Cidreira), Josyara percebe que a grande diferença de estar morando em SP foi a profissionalização que envolveu o seu ofício. “Isso foi ficando mais claro, fui vendo a necessidade de uma equipe, de banda, de organização”, conta. Em São Paulo, ela contou com uma rede de amigos que foi se ampliando cada vez mais. Mas, ainda assim, ainda teve de lidar, mesmo que de forma velada, com preconceitos e discriminações.
“Tem essa coisa da xenofobia. De fazer uma piada, uma imitação do jeito que eu falo, questionar se eu era realmente de Salvador, porque eu falo ‘ti’ e ‘di’. E também por ser negra. Juntou essa intersecção toda. Eu fui vendo e percebendo esse tipo de olhar, como quem diz: ‘o que você tá fazendo aqui nesse mercado chique de Perdizes?’”, conta.
Mas, resistiu. “Tinha um lugar dessa jovem mais raivosa, que enfrentava isso. Se diziam que não era pra eu estar ali ou fazer algo,aí é que eu ia e fazia mesmo. Tinha essa coisa mesmo dessa raiva, desse enfrentamento. Claro que tinham uns sentimentos de vulnerabilidade também, mas é muito a coisa da resistência mesmo, dos nossos antepassados, dessas coisas que nos conectam”
Há quase 10 anos na cidade, Josyara não dispensa as idas para a Bahia, nos períodos de Verão. “Esses retornos acabaram virando um equilíbrio, um respiro, uma necessidade pessoal mesmo, de matar a saudade, reenergizar”.
Produtoras do Nordeste
Quem vem acompanhando esses movimentos há cerca de trinta anos é a produtora cultural Melina Hickson, que trabalha com artistas do Sudeste e do Nordeste, mas segue residindo em Pernambuco. "Essa lógica de ir para o Sudeste mudou, mas ainda muito pouco. Por exemplo, a banda com a qual eu trabalho, Mestre Ambrósio, que saiu de Pernambuco e vai para São Paulo para fazer a carreira. Entre outros artistas que são nordestinos e saem de seus estados. A gente via Alceu Valença, Geraldo Azevedo e os grandes artistas do Nordeste, toda essa galera mora no Rio de Janeiro até hoje", diz Melina.
Ela considera que os avanços tecnológicos dos últimos tempos deram uma amainada no fluxo. “Não acho que essa lógica de ir para SP muda radicalmente, mas continua valendo durante muito tempo. Hoje em dia, com todo o acesso da internet, e depois da pandemia, realmente, estão conseguindo não precisar fazer essa migração. Ainda assim, muitos continuam indo”, comenta.
“E isso não é só entre os artistas. Eu sou uma das poucas produtoras que continua morando em Pernambuco. Eu tenho uma base em São Paulo, mas quantas e quantas produtoras saíram de Pernambuco e foram morar em São Paulo?”
“Eu continuo lá como uma bandeira fincada de uma referência da importância disso, da possibilidade de fazer o que se faz e estar conectada com o mundo todo sem precisar sair de Recife. Nesse aspecto, eu sou mais legal para Recife do que Recife é para mim".
Um Nordeste que não é ficção
A cantora e atriz potiguar Juliana Linhares mora no Rio de Janeiro desde 2010. “Eu comecei a trabalhar com música ainda de uma forma muito amadora, e com teatro. Com 17 para 18 anos eu comecei a cantar na noite em alguns bares de Natal e também participei de um grupo bem antigo da cidade, que é o grupo Estandarte de Teatro. Nesse período, eu fazia faculdade de Arquitetura. Fiz dois anos. Depois, eu larguei pra vir pro Rio”, lembra.
Apesar de já cantar em barzinhos em Natal, a música se apresentou, de fato, como uma possibilidade profissional a se explorar quando ela conheceu, no curso de Artes Cênicas da Uni Rio, Frederico Demarca e Rafael Lorga, seus parceiros do grupo Pietá.
Em carreira solo desde 2021, Juliana lançou, naquele ano, o álbum “Nordeste Ficção”, cuja música-título versa justamente sobre a imagem estereotipada que se cria do Nordeste. “O entendimento aqui no Sudeste muitas vezes é muito reduzido mesmo do que a gente é enquanto Nordeste. Nordestes, né?”, questiona.
“A gente sabe que existe uma ideia de Nordeste muito bem elaborada, divulgada e replicada de muitas maneiras, que é o que o Durval (Muniz) falou também, e de maneiras diferentes: no cinema – o que fortalece ainda mais a ideia –, na música, nas artes plásticas, na literatura. Quando você vê essa ideia sendo replicada em tantas vertentes diferentes, artísticas e culturais, isso se espalha, isso entra na cabeça das pessoas”
Por ter ido muito jovem para o Rio e construído sua trajetória profissional a partir de lá, por vezes, ela acaba se encontrando em um “não-lugar”. “Hoje é uma sensação muito louca, porque eu sinto que nem lá (em Natal) eu sou potiguar e nem aqui (no Sudeste) eu sou sudestina, como artista”, conta. “Essa sensação estranha de você não ser muito de nenhum lugar e, ao mesmo tempo, você carregar um Nordeste imenso, na forma como você fala, na sua cultura, na saudade que você tem, em todos os sentidos, na língua, né?”
Apesar desse sentimento, Juliana conclui: “Hoje eu acho que eu ganho dinheiro e faço meu trabalho circular pelo Brasil todo porque eu vim também”. Assim como tem consciência da importância de ter partido. “Acho que cada passo que você dava numa cidade muito grande reverberava muitos outros passos, né? Ganhar um público aqui, reverberava no meu público em Natal. Dar um passo no Sudeste, fazer um show na Pompeia, no festival “X”, reverbera lá”, continua. “Se eu tivesse ficado em Natal, eu não sei se hoje eu estaria até nos palcos de lá”.
“O que a gente quer, no final das contas, a gente que ama o Nordeste, é ser mais valorizado pelo que a gente é, e com a multiplicidade que é, e não o contrário, não colocados numa caixa só”, diz Juliana. "Isso não quer dizer que a gente não gosta das nossas coisas, que eu não vou comer cuscuz, que eu não vou dançar xaxado, mas eu quero fazer isso do jeito que eu puder, do jeito que eu quiser fazer”.
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