Assassinato de suspeitos pela execução de médicos expõe falhas da segurança pública; entenda
No Palácio Guanabara, o governador Cláudio Castro chegou a afirmar que se estava diante de uma "verdadeira máfia"
Produzida antes e depois dos assassinatos dos três médicos, esta semana na Barra, uma sucessão de brechas escancara as fragilidades da política de segurança pública do Rio. Menos de 24 horas após o crime, foram encontrados os corpos de quatro suspeitos de terem executado as vítimas. Com a repercussão da morte dos ortopedistas, um deles possivelmente confundido com um miliciano, a cúpula da maior facção do tráfico no Rio teria se reunido e ordenado a execução dos atiradores, que eram seus aliados. No Palácio Guanabara, o governador Cláudio Castro chegou a afirmar ontem que se estava diante de uma “verdadeira máfia”. Segundo ele, o estado estava preparado para incursões em busca dos matadores, quando foi surpreendido pelo que chamou de “pseudotribunal do tráfico”.
"O que nos parece é que até eles se indignaram com ação dos seus próprios e fizeram essa punição interna", disse Castro ao ser questionado sobre que sinal se dava à sociedade quando bandidos condenavam outros criminosos antes que a polícia os encontrasse. "O estado não se abala em absolutamente nada porque eles resolveram punir os seus. É óbvio que eles sabiam quem eram, e a gente estava num processo de investigação", continuou o governador, ao ressaltar que as apurações serão rigorosas para desvendar também os autores dos assassinatos que decorreram do crime na Barra.
Carro era monitorado pela Polícia: agentes já conheciam o Fiat Pulse. Ele estaria envolvido em outros crimes nos últimos quatro meses, mas não havia um rastreamento. Os investigadores tentaram localizar o veículo na sexta-feira (6), mas não o encontraram.
Criminosos fugiram por 36 km sem serem parados. Após matarem os médicos, eles percorreram algumas das vias mais movimentadas da cidade como Avenida das Américas e Linha Amarela. Eles passaram por radares, câmeras e não foram interceptados durante o trajeto.
Suspeitos eram foragidos da Justiça há anos. Mortos, Phillip Motta Pereira, o Lesk, Ryan Soares de Almeida estavam foragidos. O primeiro tinha três mandados de prisão em aberto, o mais antigo desde 2019 em que era acusado por tráfico de drogas. Já Ryan, apontado como braço direito de Lesk, tinha um mandado de prisão temporária desde junho deste ano por homicídio e fugiu de uma delegacia ano passado após ter as algemas retirados por PMs. Pablo Roberto da Silva dos Reis, também encontrado morto tinha passagem por furto.
Tribunal do tráfico e reunião em presídio
Os homens teriam sido mortos após decisão dos chefes da facção, que teriam ficado descontentes com o crime. Uma videoconferência teria ocorrido ontem no Complexo de Gericinó entre presos e traficantes do Complexo da Penha.
A polícia estava acompanhando os passos dos suspeitos por outros crimes e obteve um áudio em que eles comentam onde o miliciano que seria o alvo estaria.
Guerra se arrasta
Ele se reuniu mais uma vez, na sexta-feira (6), com o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, que reiterou que a Polícia Federal ampliará as ações de inteligência no Rio. Antes do encontro, no entanto, Capelli já havia se manifestado sobre a execução dos suspeitos.
"O Brasil tem leis e regras, tem um estado de direito que precisa e será respeitado. Não tem cabimento a gente dizer que organizações criminosas cometem um crime e elas mesmas resolvem esse crime", disse Capelli à GloboNews.
Na origem dessa crise — que emergiu dias depois de imagens de um centro de treinamento do tráfico no Complexo da Maré terem mobilizado estado e governo federal —, está uma guerra travada entre traficantes e milicianos pelo domínio de comunidades na Zona Oeste da cidade, que há meses faz vítimas e espalha terror, sem que a polícia a consiga estancar. Essa ligação entrou no radar dos investigadores após a análise de uma comunicação entre traficantes interceptada pouco antes do ataque aos ortopedistas. Ela daria conta da localização do miliciano Taillon de Alcântara Pereira Barbosa, acusado de atuar em Rio das Pedras, na Muzema e em outras favelas.
Filho de Dalmir Pereira Barbosa, chefe do grupo paramilitar de Rio das Pedras, Taillon não estava na orla. Mas a principal linha de apuração é que seus inimigos o teriam confundido com o médico Perseu Ribeiro Almeida, devido a semelhanças físicas. Após matarem os ortopedistas num quiosque, os bandidos levaram o carro usado no crime para o Complexo da Penha, na Zona Norte, percorrendo, sem serem interceptados, cerca de 36 quilômetros por vias como a Avenida das Américas e a Linha Amarela.
Conferência do tráfico
A polícia tentou, sem sucesso, localizar o veículo numa operação sexta-feira (6). Segundo agentes, tinha-se a ciência de que o carro poderia estar envolvido em outros crimes nos últimos quatro meses, mas não houve rastreamento.
Ainda na quinta-feira (5), no entanto, traficantes da maior facção do estado tinham se reunido para discutir a ação na Barra. Segundo informações obtidas pelo GLOBO, os chefes do tráfico no Complexo da Penha — Edgar Alves de Andrade, o Doca, e Adriano de Sá Silva, o Abelha, além Carlos Henrique dos Santos, o Carlinhos Cocaína — teriam feito uma videochamada e decidiram por ordenar a morte dos criminosos.
A consequência apareceria logo. Por volta das 23h de anteontem, de acordo com inquérito instaurado na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), foram localizados, em um Honda HRV, no Camorim, os cadáveres de três homens. Ao chegarem ao local, policiais constataram que o carro teria sido abandonado perto das 22h55, e o seu motorista resgatado por uma motocicleta. No porta-malas, os corpos tinham marcas de tiros e facadas. No bolso de um casaco de um dos mortos, estavam documentos e um celular, enviado à perícia.
Cerca de duas horas mais tarde, a DHC foi acionada outra vez, só que na Avenida Tenente-Coronel Muniz de Aragão, na Gardênia Azul, onde estava um quarto corpo no porta-malas de um Toyota Yaris. Era Philip Motta Pereira, o Lesk, que apresentava múltiplos ferimentos por projétil de arma de fogo.
Ele é apontado como o chefe da chamada Equipe Sombra, que capitanearia os confrontos entre traficantes e milicianos. Já entre os mortos encontrados antes, no estava o braço direito de Lesk, Ryan Soares de Almeida. Os dois, velhos conhecidos da polícia e da Justiça. Em distintos processos, Lesk era denunciado como integrante tanto de uma milícia quanto de uma facção do tráfico. Foragido da Justiça, ele teve a prisão preventiva decretada por associação para o tráfico em 2019. Ryan, por sua vez, chegou a ser preso em dezembro de 2020 por tráfico, posse irregular de arma de fogo e corrupção de menores. Mas deixou a cadeia em setembro de 2021.
Velhos conhecidos
Com ambos livres, a Equipe Sombra se mantinha na Cidade de Deus, na Zona Oeste, desde que rompeu com a milícia. Eles, que se aliaram à facção local, tiveram permissão de Carlinhos Cocaína para ficar na comunidade, pela proximidade com Rio das Pedras — favela que pretendiam tomar. Além deles, dois homens que não foram mortos, conhecidos como Preto Fosco e BMW, também faziam parte do grupo, responsável por uma série de homicídios em Jacarepaguá.
A execução de Lesk e Ryan, porém, ainda teria mais uma afronta aos órgãos de segurança do estado. Segundo o g1, até uma reunião por videoconferência com detentos de Bangu 3, no Complexo de Gericinó, teria ocorrido para a tomada da decisão. Sem se pronunciar sobre o assunto, a Secretaria estadual de Administração Penitenciária realizou ontem uma operação na unidade, onde apreendeu ao menos 22 celulares.
No encontro com Capelli no Palácio Guanabara, perguntado sobre a videoconferência, Castro ressaltou a apreensão de celulares em Bangu:
"Sobre a questão dessa reunião, houve uma apreensão de celulares, que já estão na perícia, já estão na inteligência".
Com relação à presença de telefones dentro dos presídios do Rio, pouco antes Capelli já havia apresentado um número revelador: sete mil deles foram apreendidos numa cooperação entre estado e a inteligência do governo federal. Ninguém entrou na questão, porém, de como eles entraram nas prisões.
Crime ‘escandaliza’
Diante desse quadro, ao reivindicar o apoio das diferentes esferas no combate à “máfia”, Castro falou em “impetuosidade” dos criminosos e disse que eles são “sanguinários, violentos, fortemente amados e têm que ser combatidos com a dureza e a mão forte do Estado”. Sobre o crime da Barra, o governador afirmou que é um fato que “escandaliza” e demonstra um “romper de fronteira” dos bandidos. Mas exaltou o trabalho da Polícia Civil.
"A gente tem que ressaltar o trabalho da Polícia Civil, que em menos de 12 horas já sabia para onde o carro tinha ido, qual era a facção e já estava com a análise das câmeras", disse ele, que destacou ainda que a motivação política para o crime está descartada.
O inquérito da DHC, no entanto, sugere a rapidez como os bandidos agiram: os executores dos médicos teriam sido mortos entre 10 e 12 horas após o crime, segundo hipótese que se deriva de um laudo produzido por peritos da especializada sobre os quatro cadáveres. Dois deles aparentavam estar em rigidez muscular generalizada.
"Quando existe morte, um dos primeiros fenômenos que aparece no cadáver é a rigidez. E é possível estimar que esse enrijecimento generalizado se dê entre oito e dez horas após a morte", explica o médico legista George Samuel Sanguinetti, da Universidade Federal de Alagoas.
Já se os suspeitos foram, de fato, submetidos a um tribunal do tráfico, o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho lembra que não é algo incomum. Segundo ele, essa é a lógica do crime organizado em todo mundo, que precisa impor seu domínio pela força.
"O tráfico em São Paulo já fez isso, ao proibir estupros nos presídios. Quem não cumprisse poderia ser executado. A máfia italiana também tem suas regras e pune com morte quem não cumpre", disse o especialista, avaliando que a violência no Rio deveria passar por uma espécie de refundação. É preciso recriar a Secretaria de Segurança que unifique as ações de inteligência.