Naquela mesa está faltando ele: Brasil tem dois milhões de crianças e adolescentes fora da escola
Quase metade (48%) das crianças e adolescentes fora da escola afirma que abandonou os estudos "porque tinha de trabalhar fora", segundo pesquisa do Ipec para o Unesco
Em meio a tantas angústias que os estudantes brasileiros sentiram durante a pandemia, uma em especial afligia Alice Suelen Santana, Emilly Bárbara Gonçalves e Mariana Menezes. As meninas, todas de 15 anos, estavam vendo seus amigos simplesmente sumirem das salas de aula da Escola Municipal Maria Dias Trindade, em Paripiranga, no interior da Bahia. Foi assim que bateu o sentimento de urgência, de que alguma coisa devia ser feita.
— Quando entrávamos nas aulas remotas, não víamos os nossos colegas de classe e vinha a seguinte pergunta à cabeça: “Ele desistiu?” — conta Emily, uma das criadoras do projeto Raízes do Meu Sertão, em que começaram a pensar estratégias para garantir que ninguém mais deixasse a escola e a buscar aqueles que já tinham desistido.
A percepção das amigas de que o problema era urgente e que eram necessárias ações imediatas reflete uma situação que se dissemina pelo país. Um levantamento do Ipec, feito a pedido do Unicef, revelou que 11% dos brasileiros de 11 a 19 anos estavam fora da escola em 2022. Isso corresponde a 2 milhões de meninas e meninos. Uma população do tamanho de Manaus.
— Teve um amigo que me fez chorar horrores quando conversamos. Estudei com esse menino no 5º ano, mas ele reprovou. A galera ficava tirando sarro porque ele já tinha sido reprovado outras vezes e era muito mais velho do que o resto da turma. Eu sentia ele muito triste com isso. O garoto queria desistir no modo remoto. Mas a gente conseguiu trazer ele de volta — comemora Emily.
O caso do colega em Paripiranga é exemplar para pesquisadores, que consideram a distorção idade-série (ou seja, alunos que reprovaram muito e passam a estudar com outras crianças muito mais novas que eles) um dos principais fatores de risco para que os jovens abandonem a escola.
Dados do Inep mostram que, em 2022, 22% dos estudantes do ensino médio são pelo menos dois anos mais velhos do que o restante dos colegas de turma. Isso corresponde a 1,5 milhão de estudantes, um contingente que corre enorme risco de abandonar a sala de aula.
“Quando um aluno é reprovado diversas vezes, sua autoestima pode ser afetada, induzindo-o a acreditar na sua inaptidão para prosseguir com os estudos, culminando no abandono escolar”, informa o relatório “Evasão escolar no Brasil pós-pandemia — Ações para um futuro mais justo e equitativo”, produzido pelo Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe), da Fundação Getulio Vargas (FGV)
Barreiras
É difícil encontrar apoio. Ruth (nome fictício) parou de estudar quando tinha apenas 15 anos, em 2014. A moradora de Irecê, também na Bahia, engravidou e se casou com um rapaz que, por ciúmes, a impediu de frequentar as aulas. Assim que a criança nasceu, a adolescente conseguiu sair da relação. Mas os cuidados com o bebê, que ainda nasceu prematuro, falaram mais alto. E a vontade de voltar à escola ficou mais uma vez de lado.
— Tentei voltar a estudar algumas vezes, mas por ser mãe solo acabei desistindo. Teria que trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Como não tinha rede de apoio, abri mão — diz a jovem, de 25 anos, que pediu para não ser identificada por não se orgulhar do que viveu. — Ainda sonho em conseguir meu diploma. Eu cheguei a fazer o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos, prova do Ministério da Educação para conseguir o diploma sem voltar às aulas). Mas, sem tempo de estudo, acabei não passando em Matemática. Conseguir terminar o ensino médio é tudo o que eu mais quero, só que é muito difícil para mim.
Ainda de acordo com o estudo do Ipec, quase metade (48%) das crianças e adolescentes fora da escola afirma que abandonou os estudos “porque tinha de trabalhar fora”. Dificuldades de aprendizagem aparecem em patamar também elevado, com 30%, com meninos afirmando que saíram “por não conseguirem acompanhar as explicações ou atividades”. Também aparecem: 28% que precisaram “cuidar de familiares” — um peso que é dado especialmente às meninas —; falta de transporte (18%); gravidez (14%); desafios por ter alguma deficiência (9%); racismo (6%), entre outros.
No caso de Beatriz Sgrignoli, de 20 anos, uma pandemia entrou no caminho de sua trajetória escolar. Ela estava no 9º ano e, aos 17 anos, tinha acabado de se mudar para viver com o namorado. A crise sanitária deixou a menina com medo de retornar às salas de aula e, quando veio a vacina, ela já tinha assumido outros compromissos: casou-se, e uma proposta de emprego para o marido levou a jovem família para outra cidade.
— Tinha acabado de ir morar com meu namorado, veio a Covid-19 e desandou tudo. Com tudo o que ocorreu na pandemia, fui desenvolvendo mais ansiedade e um medo constante de voltar a estudar e acabar reprovando. Demorou muito, casei nova e agora tenho muitas responsabilidades em casa — conta a jovem.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Educação, do IBGE, mostra que as taxas de matrícula caem significativamente com o passar dos anos até atingir o menor patamar no ensino médio. Em 2022, segundo a pesquisa mais recente, apenas 75% dos adolescentes de 15 a 17 anos estudavam ou já haviam se formado nessa etapa escolar. O restante vivia uma distorção idade-série (ou seja, em risco de evadir) ou já havia abandonado a escola. Especialistas apontam que é nessa idade que estão as maiores insatisfações com a escola e em que os estudantes têm mais oportunidade para trabalhar.
Para piorar, o primeiro ciclo do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano) teve o dobro de crianças fora da escola em 2022 em relação ao período anterior à pandemia, em 2019. Era a única etapa em que o país mantinha os níveis de matrícula acima de 95%, o que podia ser considerado uma espécie de universalização do ensino.