GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

Israel alinha narrativa e prepara escalada do conflito com o Hamas após ultimato em Gaza

Intensificação de bombardeios e preparação final para uma invasão por terra estão entre as possibilidades aventadas para a próxima fase da guerra contra o terrorismo

Palestino usa extintor para apagar chamas de incêndio causado por ataque do Exército israelense - Yasser Qudih/AFP

O ultimato de Israel para a retirada da população civil palestina no norte da Faixa de Gaza, em 24 horas, é o mais recente indicativo de que uma escalada do conflito é iminente. O anúncio, que elevou as preocupações sobre a crise humanitária no território e provocou uma retirada apressada em massa, soou como um sinal de que os próximos passos da guerra já estão desenhados, aguardando por uma execução em breve.

As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) não entraram em detalhes sobre o plano de ação após a saída dos civis, mas indicaram um possível foco da nova fase da guerra no mesmo comunicado em que recomendaram a evacuação.

Em vídeo, um porta-voz do Exército afirmou que os terroristas do Hamas estão “escondidos em Gaza, dentro de túneis, debaixo de casas e dentro de edifícios povoados por civis inocentes que são usados como escudo humano”, prometendo operar “com força significativa” nos próximos dias, sem prejudicar civis.

O sistema de túneis do Hamas é uma das principais preocupações de segurança de Israel desde antes do ataque terrorista do último sábado. O grupo palestino alega ter uma rede subterrânea de cerca de 500 km (a título de comparação, o metrô de São Paulo tem 104 km de extensão). Dados de 2021 das IDF indicam as localizações de alguns desses túneis, mas não se sabe quantos mais estão ativos ou se reféns levados a essas estruturas dentro do território.

De acordo com o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em ciências militares, a indicação de uma ação contra os túneis do Hamas e o pedido expresso para retirada da população civil indicam, junto com a convocação de 300 mil reservistas, que Israel prepara uma invasão por terra em larga escala.

"Atacar túneis com bombas e mísseis é uma tarefa muito difícil. Contra túneis superficiais é até possível, mas a partir de 2 a 3 metros de profundidade, começa a ficar difícil, inclusive porque em cima deles há construções que fazem o explosivo detonar antes de perfurar o solo", disse Gomes Filho, em entrevista ao GLOBO. "Operações contra túneis exigem mais ações terrestres. Se o objetivo de Israel fosse destruí-los com bombardeios, seria necessário ter uma localização tão exata, uma ação tão precisa e uma carga explosiva tão bem definida, que não seria preciso pedir a evacuação dos civis".

Embora a guerra contra o Hamas seja o que na doutrina militar se chama de guerra assimétrica, por envolver um país e um agente não estatal, e de Israel possuir um poder de fogo superior ao do grupo terrorista, a invasão terrestre é o cenário mais ameaçador para as forças israelenses. As IDF até disseram ter realizado "incursões pontuais" entre quinta e sexta-feira, na tentativa de localizar reféns, mas da última vez que militares entraram em Gaza com maior contingente, em 2014, dezenas morreram.

"Esse tipo de operação militar é muito difícil, principalmente por se tratar de um local extremamente denso. Cada janela em Gaza esconde, potencialmente, um inimigo, uma emboscada, uma metralhadora", afirmou.

Além da retirada de civis, outras estratégias foram usadas por Israel na tentativa de melhorar as chances de seu "investimento" por terra. O porta-voz das IDF, Daniel Hagari, disse que bombardeios extensos foram realizados em toda Gaza ontem — em outro forte sinal de preparação do terreno.

"É muito difícil para Israel conseguir uma incursão bem-sucedida, com poucas baixas, em um local onde o Hamas conhece as construções e os prédios melhor. A fase de bombardeio aéreo é para também preparar uma possível incursão terrestre e facilitar essa entrada. É uma guerra complexa e assimétrica, em que o Hamas vai tentar impor o máximo de perdas a Israel", afirmou a professora Mariana Kalil, da Escola Superior de Guerra.

Na leitura da professora, os bombardeios somados à retirada da população civil têm como objetivo tentar remover obstáculos do campo de batalha, criando uma situação mais favorável às tropas israelenses.

Preocupação humanitária (e de imagem)
Embora o anúncio do ultimato tenha provocado uma forte reação da comunidade internacional, com a ONU alertando para possíveis "consequências humanitárias devastadoras", os especialistas apontam que o anúncio cumpre uma dupla função: além do alerta à população civil, em uma tentativa de reduzir as baixas civis que se aproximavam da casa dos 2 mil ontem, serviria também como forma de controlar a narrativa e manter o apoio da opinião pública.

"A guerra entre Israel e o Hamas é um grande exemplo de guerra híbrida, e Israel vai tentar manter o controle da narrativa independente do que aconteça. Dentro desta lógica, mesmo que nada mude no campo de batalha e apenas os bombardeios sejam mantidos, a ordem de evacuação por si só serviria para diminuir os danos à imagem de Israel", afirmou Kalil.

Ainda de acordo com a professora, é pouco provável que não haja nenhum avanço no campo militar.

"Israel tem tido uma preocupação ao longo do tempo de tentar fazer com que os efeitos colaterais [de suas ações em Gaza] sejam os menores possíveis, adotando táticas para avisar civis antecipadamente, mesmo antes deste conflito atual", afirmou Gomes Filho. "Isso tem razões humanitárias, mas também de autopreservação perante a opinião pública internacional, e para não gerar antagonismos com países árabes e defensores da causa palestina".